Entre todos os mistérios que rondam nossa área há um difícil de explicar e justificar: qual a razão de tanta resistência na adoção de um ciclo de desenvolvimento que seja iterativo e incremental?

Nos últimos três anos, só por conta do FAN, pude falar com mais de dois mil profissionais e estive pessoalmente em dezenas de empresas. Sei que não tem valor de pesquisa, mas foi fácil concluir que pelo menos 95% deles ainda trabalham baseados em um modelo “cascata” (ou Waterfall) de desenvolvimento¹. Se considerarmos que já tem quase duas décadas que vários autores, metodologistas, empresas e consultores recomendam a adoção de outro modelo, qual a razão da incontestável predominância da “cascata”?

Não, este (pequeno) artigo não tem a menor intenção de reativar o debate ou destacar prós e contras de cada proposta. Aliás, se você quiser uma boa justificativa *econômica* para adoção do modelo iterativo & incremental, deveria ler este texto do José Paulo Papo. Minha preocupação aqui é outra.

Comumente apresentamos o modelo iterativo e incremental, independentemente do sabor (RUP, XP, Scrum, OpenUP…), como um remédio para as inevitáveis mudanças. Esse discurso costuma encontrar dois tipos de reflexos:

  1. (Ainda) existem aqueles que acreditam que mudanças ocorrem exclusivamente porque o entendimento do problema não foi bem realizado. São os mesmos que, infelizmente, acreditam que a Análise de Negócios é a resposta definitiva para especificações (sic) mal feitas. O que vemos neste cenário é mais gente gastando mais tempo e dinheiro para escrever mais. Deveríamos escrever melhor, estruturar melhor as informações aprendidas e colaborar, conversar mais. E não escrever mais e de maneira mais detalhada².
  2. “Os requisitos são estáveis e temos uma ótima compreensão do problema que iremos sanar. Podemos trabalhar em ‘cascata'”. É um reflexo parecido com o anterior mas com uma diferença: há realmente a sensação de que o solo pisado é de fato conhecido. Esta é uma das justificativas que encontro com maior frequência para a não adoção de um modelo iterativo e incremental.

Percebendo os dois reflexos alterei minha maneira de apresentar e “vender” o modelo iterativo e incremental. Transcrevo abaixo o que costumo falar nos treinamentos e consultorias:

O que é bonito no modelo iterativo & incremental é que ele reconhece um fato que nunca mudaremos: somos humanos. Ou seja, nós vamos cometer erros. Vários! Ao adotar este modelo estamos dizendo para nossos usuários e clientes: “Nós vamos errar, caríssimos, todos nós. Às vezes será um problema de interpretação de seus requisitos e histórias. Outras tantas vocês errarão, na explicação ou apresentação das próprias necessidades. E, precisamos admitir, muitas vezes as funcionalidades entregues não os atenderão pelos mais diversos motivos. Não importa. Aliás, não importa desde que o modelo de desenvolvimento adotado reconheça essa verdade: somos humanos e vamos errar”.

Esse discurso gera duas respostas muito positivas: i) desarma aqueles que ficam louquinhos por um debate; ii) facilita a compreensão por todos que nunca trabalharam de outra maneira que não seja a “cascata” ou o “caos absoluto”. São bastante perceptíveis também as carinhas de surpresa que surgem com a repetição de uma palavrinha: Erro.

Criamos uma cultura que combate e pune erros. Mesmo em ambientes que se dizem “inovadores” o erro ainda é mal visto. As pessoas vivem com medo de errar. Imagine então o desafio de dizer, antes mesmo do início de um projeto, que erros acontecerão. Mas é fato: erramos. Pra caramba!

Clientes e usuários costumam gostar muito dessa transparência, dessa sinceridade. Estranham porque ela não é muito comum em nosso mercado. Mas aceitam o modelo e o consequente desafio com mais facilidade³. Daqui para a adoção de outras práticas mais modernas é “um tirinho”.

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Observações:

  1. Num belo dia um cliente pediu que eu pulasse essa parte do curso: “A gente já desenvolve assim”. Obedeci. Mas depois o treinamento caminhou na base de soluços. Descobri o problema e o susto que curou o soluço: “É que nossas iterações duram algo entre 3 e 4 meses”. Ou seja, eles não desenvolviam de forma iterativa e incremental. Era outra coisa.
    Um outro freguês, agora numa turma aberta, disse que usa Scrum mas que tem que levantar todos os requisitos no início do projeto. Ou seja, não era Scrum. Também era outra coisa qualquer que nem merece nome.
  2. Era uma vez uma empresa que terceirizava todo o trampo de codificação para “fábricas de software” (sic). Eu apresentava para eles os 5 ícones recomendados pelo Cockburn (“Escrevendo Casos de Uso Eficazes”, Bookman. 2006) para indicar o nível de detalhamento de uma especificação de caso de uso. Eles disseram que, para trabalhar com fábricas, os 5 não seriam suficientes. Pediram a criação de outro, abaixo da “ostra”. Sugeriram a colocação da logomarca da Petrobras. E explicaram: “É o nível ‘pré-sal’, sete mil metros abaixo do nível do mar! Só assim o pessoal da fábrica entende.” Repito: não é escrever mais. Não deveria ser…
  3. Era outra vez, lá pelos idos de 2001 ou 2002, eu tocava um projetão. ÃO mesmo, em porte e complexidade. Sabe-se lá porque ($$$) topamos que o cliente “espelhasse” toda nossa estrutura gerencial. Para cada líder de nosso lado, eles colocavam um líder do lado de lá. Um mês de lua-de-mel. Um mês de “briguinhas”. E no terceiro mês a pérola: “Para com esse negócio de iterativo e incremental – queremos que seja cascata”.
    Juro, não é cascata não. Contei a história aqui só para dizer que a palavra “facilidade”, escrita ali no último parágrafo, deve ser interpretada com a devida precaução.
  4. Funny“, a foto utilizada acima, é da Tanakawho. Sempre ela!