Continuação de “Escritórios, Comunidades e Panelinhas“. Naquele artigo sugeri que Comunidades de Prática podem ser uma alternativa mais eficaz e barata que Escritórios (de Projetos, de Análise de Negócios etc). Hoje tentarei mostrar como uma organização pode identificar, negociar e formalizar uma Comunidade de Prática. As comunidades ou panelinhas já existem e seguirão existindo, queira a gerência ou não. Sua formalização pode representar ganhos em termos de aprendizagem organizacional, ambiente de trabalho e agilidade. Três A’s que devem justificar este tipo de investimento. E que podem ser facilmente medidos.

Até uma gerência muito mecânica e dura, baseada em Comando & Controle, sabe da existência de panelinhas entre seus “gerenciados”. A Identificação delas pode ser simples, mas merece alguns cuidados. Em ambientes de trabalho ruins, deteriorados por uma série de razões, as panelinhas ocupam-se demais com chororôs e reclamações diversas. O que une aquelas pessoas é um “inimigo” comum e não um interesse comum. Nestes casos é um tanto mais difícil a seleção de um grupo que possa vir a formar uma comunidade de prática. Se o gerente não for o “inimigo” comum (e ele sabe quando o é), deve tentar participar das rodas de conversas para avaliar quanto conhecimento bom circula por ali. Se pelo menos 20% ou 30% do tempo não for dedicado à chiadeiras em relação ao trabalho já é um bom indício. Sinal de que aquela panela pode ser mais produtiva.

As panelinhas, por constituírem uma estrutura marginal e não reconhecida pela organização, funcionam nas brechas, nos horários vagos e geralmente em locais abertos, públicos. Reúnem-se ao redor de máquinas de café, nos restaurantes, bares e até em quadras esportivas. E costumam valorizar demais seu tempo e espaço. Por isso a intromissão de um gerente ou equivalente deve ser bem medida e cheia de tato. E silenciosa. Tudo o que ele quer é ouvir. Desnecessário dizer que um gerente boa praça e com ficha relativamente limpa não deve encontrar muitas dificuldades neste momento.

Vamos supor que o interesse comum de determinado grupo seja a “arte” do gerenciamento de projetos. Entre choramingos, comentários sobre a roupa de fulana e os resultados dos jogos do final de semana, vez por outra as pessoas daquele grupo vão “falar de trabalho”. Este papo, normalmente censurado nas happy-hours de sexta-feira, é o que pode interessar para a organização. A conversa é rica? As pessoas estão realmente trocando experiências? Quantas dicas e momentos a-ha aparecem em um encontro? Os membros sentem-se à vontade para criticar? As críticas são bem recebidas? Não há trollagem (sic) nem rivalidade mal administrada? É fácil perceber quando uma conversa é boa, quando ela gera o que chamei acima de “bom conhecimento”. Se for o caso, acabamos de identificar um excelente candidato à Comunidade de Prática.

Iniciamos então a etapa de Negociação. Espera-se que o gerente já tenha combinado previamente com a alta direção da organização. É dela que ele receberá os parâmetros negociáveis. E, sinceramente, é nesta negociação prévia que encontramos as maiores dificuldades. Como estamos muito distantes do costume de “formalizar panelinhas”, tudo pode soar muito estranho para os donos da grana: “Como assim, CEDER 4 horas semanais para o grupo? Por PRAZO INDETERMINADO? E EMPRESTAR uma sala de reuniões? E NÃO COBRAR resultado nenhum? Como assim?”

Destaquei nas questões acima aquelas que considero ofertas mínimas que uma organização pode apresentar para uma comunidade de prática. Revendo:

  • Uma fração da jornada normal de trabalho, no mínimo 10%. Seria uma sacanagem sugerir encontros fora do horário de expediente. A panelinha já o faz e em lugares mais aprazíveis que as tradicionais salas de reunião. E não é nada eficaz colocar alguma condição para o uso dessas horas. É preciso criar costume, criar cultura. Sempre achei que a tarde das sextas-feiras existe exclusivamente para atividades “lúdicas”.
  • Uma Comunidade de Prática não é um projeto nem trabalha em um. Por isso sua existência não tem prazo de validade. Se um dia o grupo descobrir que não está aprendendo mais nada – que sua relação se esgotou – então ele pode decidir pelo encerramento de suas atividades. A organização, em casos extremos, também pode extinguir um grupo. Mas deve estar ciente das consequências negativas de sua decisão.
  • O grupo merece um local adequado para suas discussões. Por adequado entenda: minimamente isolado de outras áreas e equipado de recursos básicos (quadro branco, mesas, cadeiras etc).
  • Por fim, mas não menos importante – muito pelo contrário, o compromisso de não cobrar resultados de uma comunidade de prática. Se ela não é nem está em um projeto, não há metas ou objetivos específicos justificando sua existência. Talvez este seja o ponto mais controverso e mal compreendido de uma comunidade de prática. É claro que uma empresa pode avaliar a qualidade das conversas e do conhecimento que está sendo gerado ali (sobre isso eu falo abaixo). Eventualmente, pode até sugerir algum tema ou problema específico para a pauta do grupo. Mas é fundamental que o grupo não seja percebido como ou confundido com um departamento ou time de projeto, estruturas que são responsabilizadas e cobradas por resultados específicos.

Fechando o tópico Negociação, é factível supor que a grande maioria das panelinhas receberá de braços abertos uma oferta como a sugerida acima. Ou seja, a negociação com elas tende a ser fácil e rápida. Os maiores riscos que podem existir referem-se à ambiguidade dos parâmetros ou fragilidade da decisão de formalizar uma comunidade de prática. Se os parâmetros acima foram bem costurados com alta direção e membros da panela, não há o que temer. Resta formalizar.

A Formalização de uma Comunidade de Prática é uma etapa burocrática com valor simbólico. Se uma organização de fato acredita no potencial deste tipo de estrutura para aprender mais e melhor, então ela deve tornar seu apoio explícito. Ao comunicar para todos a iniciativa, a empresa aponta um caminho e uma referência. Na esperança de que outras panelinhas almejem destino semelhante. A boa inveja move montanhas. E talvez a organização descubra várias cumbucas com conteúdo apetitoso e muito relevante em relação aos seus planos e projetos.

Acompanhando uma Comunidade

No início do artigo adiantei a existência de três A’s que devem justificar a existência de uma comunidade de prática e também ajudar a avaliá-la: Aprendizagem Organizacional, Ambiente de Trabalho e Agilidade. Hora de explicá-los.

Conhecimento é um negócio bem difícil de ser medido. Mas o número de vezes que repetimos os mesmos erros não. Uma organização percebe o valor de uma comunidade de prática longe dela, no trabalho cotidiano de seus integrantes. Se eles continuarem batendo cabeça em questões recorrentes ou repetindo erros, é claro sinal de que a comunidade não está funcionando como deveria – ninguém está aprendendo. Na realidade, existem três estágios de evolução que devem ser percebidos:

  • Cognitivo: foi gerado conhecimento novo. E houve também um nivelamento de conhecimentos. Uma diferença que poderia ser bastante perceptível no início do grupo tende a ser reduzida drasticamente ao longo do tempo. Difícil fixar um prazo, mas é de se esperar que em doze meses  (48 reuniões ou 192 horas depois) o grupo esteja muito mais homogêneo em termos de conhecimentos (de práticas e métodos conhecidos e exercitados por todos, por exemplo).
  • Comportamental: surge um padrão de comportamento positivo. Positivo porque não anula individualidades, mas reforça um denominador comum nos modos de pensar e agir.
  • Melhoria do Desempenho: por fim, a organização deve perceber ganhos quantificáveis: qualidade superior do trabalho, prazos respeitados, menor número de reclamações de outras áreas etc.

A organização também deve perceber uma mudança em seu ambiente de trabalho. A comunidade não é um órgão fiscalizador ou repressor. Pelo contrário, é uma estrutura autônoma baseada na conversa franca e aberta entre membros que se autoselecionam. Se dessa cumbuca não brotar um ambiente de trabalho mais agradável, difícil supor o que conseguiria tal feito.

O terceiro A é de Agilidade. Mesmo que se limite a encontros (formais) semanais, espera-se que o conhecimento flua e se espalhe de maneira mais rápida entre os integrantes da comunidade e deles para toda a organização (como normalmente ocorre com uma fofoca ou notícia ruim). Não há pontos de checagem e raramente existirão documentos dando forma para aquele conhecimento. Estamos falando de conhecimento tácito que não nasceu para morrer no papel. Estamos falando de experiência, de saber fazer e saber decidir.

Uma Comunidade de Prática, bem chamada pelo Leandro Mendonça (em comentário) de “Rádio-Peão”, torna-se um grande amplificador e difusor de bons conhecimentos. Pois é, quem diria que panelinhas e rádios-peão virariam peças bem vindas no jogo dos negócios?

Artigos como este que aqui se encerra, teóricos e um tanto genéricos, são necessários. Mas provavelmente deixam em ti a mesma vontade que sinto: de ver o outro lado, o lado prático. Por isso no próximo artigo vou mostrar como funcionariam duas comunidades de prática: uma de Gerentes de Projetos e outra de Analistas de Negócios. Inté!

ps: A “Panelinha” utilizada hoje é do Guilherme Kardel e foi obtida no Flickr.