Brasileiros gostam de ser guiados. Encontram segurança quando olham para cima em uma organização hierárquica e encontram autoridades. Acham conforto quando ouvem, lá de cima, um grande conjunto de leis e regras. Conforto não significa obediência, o que invariavelmente resulta em novas leis e novas regras. Esta é uma leitura possível deste estudo de Geert Hofstede, que me foi apresentado por Shane Hastie no final do ano passado. Dá o que pensar, não? O nosso incomensurável e complexo sistema legal seria produto de uma cultura – do gosto por ser regulado.

Estamos bem servidos e já não estranhamos o fato dos poderes executivo e judiciário também legislarem. Afrouxamos regras para a criação de regras – através de medidas provisórias, por exemplo. Só a legislação tributária recebe em média sete novas inserções diárias em seus incontáveis alvos e sabores. E pensar que um dia já tivemos um tal Ministério da Desburocratização. Não espanta que ele tenha durado tão pouco. É causa perdida e de pouco apelo popular. É?

É triste a vida de um povo que depende de leis e respectivas penalidades para saber, por exemplo, onde não é permitido fumar e que não pode dirigir se tiver entornado umas biritas. E parece paradoxal que o desenvolvimento econômico e social da última década não tenha gerado uma redução no número de leis e regras. Pelo contrário, ele aumentou. Até que ponto um sistema tão regulado e restritivo se sustenta?

A metáfora que cabe aqui é a do sabonete molhado. Esprema-o. Em determinado momento ele saltará de suas mãos. Faltou drama? Troque o sabonete por um passarinho.

Nossa legislação tributária, burra em sua essência, já escapuliu das mãos faz tempo. Mas não caio na armadilha do volume da carga e nem pretendo discuti-lo aqui. É sua complexidade que não se justifica. Basta olhar todo o aparato necessário para calcular impostos para perceber que há algo de muito podre no país das maravilhas. Se parte dessa complexidade foi pensada para pegar gatos e gatunos, é hora de entender que a mesma complexidade abre buracos na rede por onde passam vazam cachoeiras.

Mas será o nosso gosto inato por leis e regras desculpa para deixar tudo como está?

Os Outros Três Dedos

É tão fácil apontar para o governo, não é mesmo? Está aqui outro traço da cultura tupiniquim, um que passou desapercebido pelo estudo de Geert Hofstede: o costume de se livrar de responsabilidades, de sempre achar que a culpa é de outro. A autocrítica sincera, definitivamente, não figura entre nossas qualidades. Vivemos ignorando um velho ditado chinês: quando você apontar para alguém, veja para onde apontam os outros três dedos.

A parte endireitada de nossa grande prensa vive dando generoso espaço para empresários e seus representantes repetirem, ad nauseam, o mesmo chororô: a) a carga tributária é altíssima; b) a regulamentação é exagerada e complexa; em outras palavras: é difícil fazer negócios no Brasil. Acho que ninguém em sã consciência negaria a verdade dessas reclamações. Elas são corretas. Serão justas?

Não da boca de quem, alegando corte de custos, terceiriza alguns de seus processos primários (atendimento a clientes, por exemplo) contratando empresas que alocam seus teleatendentes em uma das cidades mais caras da América Latina. Tão absurda quanto uma alíquota de 50% de algum imposto qualquer é a contratação de serviços de telemarketing localizados na avenida Paulista. Um contrassenso que só não choca porque não é noticiado. Nem vou entrar na discussão sobre taxas administrativas (de serviços financeiros) e o tal spread bancário. São as regras e a consequente complexidade gerada por elas o assunto aqui.

Toda empresa, em qualquer lugar do globo, está sujeita ao Marco Regulatório imposto por governos e agências reguladoras. Não acredito que chegará o dia em que os negócios confessarão estarem plenamente satisfeitos com o conjunto de regras ao qual está submetido. Sempre existirão aqueles que reclamarão do excesso de regulação ou, na outra ponta, da perigosa porosidade das fronteiras de seu ramo de atividades. Mas para onde apontam os outros três dedos dos reclamantes?

O quão fácil é fazer negócios com a sua empresa? Está aqui um teste que pode envergonhar muita gente. Pense, por exemplo, no setor de serviços. Lembre-se da última vez que contratou uma apólice de seguros ou um serviço de telecomunicações. Ou então pense, agora como colaborador, no conjunto de regras que sua empregadora impõe. Será que a burocracia criada pelos nossos próprios negócios é assim tão diferente daquela que vem das esferas governamentais? É triste reconhecer que, em muitos casos, é cara de um e focinho de outro. Frutos de uma mesma cultura.

Acho que as empresas serão mais eficazes em suas reclamações quando servirem de exemplo. Até lá, seu interminável chororô não passará de pura hipocrisia.

Desobediência Civil

Já reparou no que fazem algumas classes quando querem chamar a atenção sem fazer uso de greves? Elas adotam a Operação Padrão, também conhecida como Operação Tartaruga. E o que ela significa? Que todas as regras serão cumpridas, sem exceção. Não é curioso que o modus operandi tradicional signifique a mais descarada vista grossa para o procedimento formal?

E o que dizer das metodologias, que são abandonadas tão logo surja um primeiro desvio não previsto? E daqueles procedimentos ISO-like que só são seguidos em tempos de homologação?

A quebra de regras, a desobediência civil, é a Regra, não a exceção. Se esses desvios não são inocentes, por outro lado também não são, em sua grande maioria, culpados. Podem ser apenas os sintomas de um sistema que não suporta mais o próprio peso. Um sistema que clama por ordenação e simplificação do jeito que pode. Do jeito que sabe.

 

Notas

Repare novamente a foto utilizada no topo deste artigo. Ela mostra uma rua de Zurique, Suíça, praticamente sem nenhum tipo de sinalização. Nem calçada tem. A ausência de regras tornou a todos, motoristas e pedestres, mais cuidadosos. O que parece ser um descuido por parte do governo é na realidade uma delegação de poderes. Que os elementos daquela parte do sistema definam suas regras de convivência. Lao Zi, um filósofo chinês lá dos idos de 600 a.C., dizia que o controle inteligente se confunde com a falta de controle – também conhecida como liberdade. Aprendi essas provocações em Management 3.0, de Jurgen Appelo.

Está longe deste que aqui escreve propor a desregulamentação ampla, geral e irrestrita. Crianças levadas (como o sistema financeiro mundial) e potes de ouro (como licitações públicas) precisam e seguirão merecendo boas regras e respectivas palmadas. Pessoas adultas e profissionais deveriam merecer o benefício da dúvida. Sempre.