É muito pouco provável que alguém do Universo Samba (Negócios) perca dois minutos de sono ou dois fios de cabelo por causa deste artigo proveniente do Universo Bebop (TI). As interfaces fraquinhas e o pouco interesse que um nutre pelo outro – apesar da mútua dependência – tendem a deixar tudo (caduco) como está. Como sou metido a besta e me sobrou um tempinho, vou jogar dois gravetos verdes nessa acanhada fogueira.

Não entendeu nada, né? Eu explico. O artigo em questão compila uma série de reclamações que Steve Denning, autor de The Leader’s Guide to Radical Management (Jossey-Bass, 2010), publicou na revista Forbes. Denning reclama de um certo conservadorismo por parte dos “gerentes” e da “tendência muito antiga de se ignorar ideias novas e ousadas”. Condena, no atacado, a relutância ou desconhecimento dos “gerentes” do que seria o movimento Agile.

Me surpreendi com uma das conclusões de Denning. A de que os “grandes avanços na área de gestão” obtidos através de métodos ágeis não pegaram no mundo dos negócios porque não foram pessoas ou acadêmicos “de negócio” que os criaram. Foram os nerds, segundo suas próprias palavras. Em outro trecho, uma derrapada comprometedora:

“O mundo gerencial continua em estado de negação sobre as descobertas dos métodos ágeis. Você pode explorar as páginas da Harvard Business Review e dificilmente encontrará quaisquer referências, mesmo que indiretas, para as soluções que a filosofia ágil oferece aos problemas gerenciais da atualidade.”

De onde Denning acha que brotaram 80% das ideias que compilamos e etiquetamos como agile, lean etc? Será que ele se lembra que o Scrum, por exemplo, é inspirado em um artigo da mesma Harvard Business Review de janeiro de 1996? E o que dizer dos artigos e do trabalho de Donald Reinertsen, autor de Managing the Design Factory¹ (The Free Press)? Ele aparece na mesma InfoQ e está na edição atual (maio/2012) da edição brasileira da HBR, com o artigo Seis Mitos do Desenvolvimento de Produtos. Qual é o problema? O fato de vários autores (de negócios) não revenderem a marca Agile, apesar de a influenciarem e serem influenciados por ela?

Eu só boto Bebop no meu Samba…

… quando Tio Sam tocar um tamborim”². Esta citação apareceu em um papo que rolou com o amigo Leandro Mendonça. Ele trabalha em outro universo: Publicidade. E tem como uma de suas diversões favoritas ver como a patota de TI reinventa a roda, registra patente e bebemora o feito. O artigo em questão, além de comprovar este ciclo, não contribui em nada para uma mudança da situação. Pelo contrário, parece fechar portas. Veja, por exemplo, as “dez objeções perenes da gestão” apresentadas:

  1. O Agile é apenas para estrelas – Ao ser confrontado com a escolha entre o alto desempenho e a mediocridade, a gerência tradicional escolhe a segunda”.
    pv: Existe mesmo algum gerente que, em sã consciência, faz opção pela mediocridade?
  2. O Agile não se enquadra em nossa cultura organizacional – No mercado dos dias atuais, ou as empresas mudam sua cultura ou morrem. A cultura das empresas deve ser ágil”.
    pv: Não sei de nada, mas desconfio de muitas coisas³. Desconfio, por exemplo, que mudanças impostas, arbitrárias (“deve ser ágil”), são mais efêmeras que bolas de sabão.
  3. O Agile apenas funciona para projetos pequenos – Já existem soluções óbvias para se lidar com projetos grandes…
    pv: Impressionante como “óbvio” constantemente se parece com álibi (“não tenho uma boa resposta”) ou falta de respeito (“você é burro e não perderei meu tempo contigo”).
  4. O Agile requer que as equipes estejam no mesmo lugar – … pode-se usar tecnologias para manter a comunicação aberta e contínua”.
    pv: Nenhum gerente sabe disso. Mal sabem que já inventaram o telégrafo!
  5. O Agile é fraco em processos gerenciais – A não ser que você escolha uma metodologia ágil que já atenda a todos os processos necessários, é importante juntá-la com outra que supra os processos não cobertos”.
    pv: Difícil imaginar resposta pior. Ou o Agile deixou de questionar os “processos necessários e não cobertos”?
  6. O sistema de recompensas individuais de nossa empresa não se encaixa no Agile – É o sistema de recompensas que está errado, não o Agile. Mude o sistema”.
    pv:  Mude o sistema e tente explicar para o Zé, que rende quatro vezes mais que o João, porque ambos passarão a receber a mesmíssima recompensa. Em Management 3.0, Jurgen Appelo nos explica que “não há nada inerentemente errado com sistemas de recompensas individuais. Eles só se tornam um problema nas mãos de ingênuos que desconhecem seus riscos”.
  7. O Agile é algo passageiro – Não se trata de uma solução para todos os problemas… O Agile é a solução para um problema particular, ou seja, a reaproximação de uma execução disciplinada com a criatividade e a inovação”.
    pv: A questão, ou, usando os termos do artigo original, a “objeção perene” era outra. Agile é passageiro? Nada, em nenhum dos dois universos, que passe dos onze anos de vida pode ser classificado como “passageiro”. Ele veio para ficar? Meu caro, além da beleza da Catherine Deneuve, da estupidez humana e das embalagens de plástico, o que mais veio para ficar?
  8. Há ideias melhores que o Agile – Em vez de entrar nessa briga, prefira buscar os aspectos comuns entre estes movimentos e junte forças para obter um resultado mais efetivo”.
    pv: Santa saída estratégica pela direta, Batman! Sempre existirão ideias melhores que outras, dependendo do contexto. Como Agile também se apresenta como “cultura” e “filosofia”, talvez valha a pena “entrar na briga” ao invés de fugir ao primeiro desafio apresentado.
  9. Nada de novo aqui – Todos os componentes individuais do Agile já existem há algum tempo. O que é novo é juntar todos estes elementos de uma maneira coerente e integrada”.
    pv: Acho que fui mais corajoso ao afirmar anteriormente que 80% dos componentes do Agile já existiam. O que a resposta acima omitiu foi a origem desses componentes. Não estaria neste reconhecimento uma boa arma para vencer as “objeções perenes” dos gerentes?
  10. Não é uma comparação justa? – Introduzir Agile (de verdade) significa expor todos os truques encobertos que os gerentes, em hierarquias tradicionais, utilizam sobre seus subordinados para manter o poder”.
    pv: E assim Agile vira o sol que vai revelar todos os segredos dos gerentes e, de quebra, dar uma desinfetada no ambiente. Talvez esteja aqui, nesta ingênua acusação, a principal razão pela qual ainda temos muitos gerentes relutantes em relação ao Agile. Caramba, eles foram apontados como os inimigos desde o início. Appelo de novo: “Acredito que o desenvolvimento Agile negligenciou a importância da gestão. Se os gerentes não sabem o que fazer e o que esperar de uma organização Agile, como esperar que eles se envolvam na transição para o desenvolvimento Agile? Qual é a mensagem aqui? Se é apenas ‘não precisamos de gerentes’, então não surpreende o fato de estarmos conversando sobre ‘objeções perenes'”.

Não estou isentando os gerentes de nada. Quem sou eu para isentar alguém de qualquer coisa? Existem sim os gerentes relutantes e ignorantes e muitos deles seguirão existindo, não importa o que façamos ou quanto gritemos. Mas passou da hora da gente, dos que acreditam na proposta Agile, assimilarmos um velhíssimo dito chinês, aquele que ensina: “quando apontar o dedo para alguém, repare para onde apontam três dedos”. É de quem vende uma ideia, de quem propõe uma mudança, o ônus da prova. Show me the money!, dizem os caras de negócios. Enquanto não provarmos nossas teses com fatos, números e valores, estaremos apenas e simplesmente (simploriamente?) filosofando.

Os caras não colocarão bebop no samba deles enquanto não pegarmos nos tamborins, mora?

 

Notas

  1. São raros os trabalhos do mundo Agile que souberam equilibrar, como Reinertsen neste livro, as preocupações com Organização, Processos e Produto (Arquitetura do). Uma honrosa exceção é Agile Project Management, de Jim Highsmith. Reparem como nossos papos andam monotemáticos: processo, processo, processo… Scrum, Kanban, baranga-dã… Outra diferença fundamental do trabalho de Reinertsen, já demonstrada anteriormente em Desenvolvendo Produtos na Metade do Tempo (Futura, 1997), é a preocupação com a Economia – com a grana que o produto pode gerar e com os custos que o projeto deve suportar.
  2. Foi Jackson do Pandeiro quem escreveu “Chiclete com Banana” e desafiou Tio Sam a pegar um tamborim. Foram Leandro Mendonça e Pedro Braga que me deram esse presente. Ou será que surrupiei a ideia indevidamente?
  3. Foi Guimarães Rosa quem originalmente disse não saber de nada mas desconfiar de muita coisa.
  4. Tamborim, a imagem utilizada, é de Schröedinger’s Cat.