Não importa se é um bug ou característica programada. O fato é que os métodos e frameworks mais populares – particularmente Scrum e Kanban – tropeçam no mesmo buraco. Apesar de suas imensas diferenças, essas propostas são omissas ou relapsas no mesmo ponto.

No distante 1986 Fred Brooks nos alertou¹:

“A correta definição do que precisa ser feito é a etapa mais difícil do desenvolvimento de sistemas. Nenhuma outra compromete tanto um projeto quando mal executada. E nenhuma é mais difícil de ser corrigida.”

O que fizemos de lá para cá?

  • Distorcemos todos os currículos relacionados com a formação de engenheiros e analistas de sistemas. Enfatizamos o domínio da solução – programação e mais programação – em detrimento do domínio do problema.
  • Mas a Academia, apressada, estava apenas seguindo o mercado. Um mercado que inventou, em meados dos anos 1990, um tal de analista-programador. Isso tem reflexos negativos até hoje. Basta ver a reincidência de um álibi fajuto: “o cliente/usuário nunca sabe o que quer”. Quem aprendeu a perguntar? Quanta ajuda o cliente/usuário tem merecido?
  • De repente, ganhamos Agilidade. Com muitas propostas que parecem ser “do desenvolvedor, pelo desenvolvedor, para o desenvolvedor”. A coisa só piorou.
  • E tocou o fundo do poço quando alguém acreditou que um Business Model Canvas –  uma cortina feita de papel sulfite – seria capaz de esconder aquele imenso buraco.
  • Oras, e se o buraco for apenas uma hipótese? Vamos todos fingir que o buraco não existe; Ou é parte da decoração; Ou é a opinião de alguém.
  • Por fim, se o tal Upstream Kanban pretende, ainda que parcialmente, tratar do domínio do problema, então ele não pode começar se apresentando como um “processo de triagem”. Que vai da síntese para a análise? Fixando CONWIPs?!?²

A Acusação Comum

Um efeito esquisito do movimento Ágil, que contradiz sua intenção de ser Sistêmico, é a percepção generalizada de que tudo o que não é construção é desperdício. James Coplien e Gertrud Bjørnvig reclamam disso em Lean Architecture (Wiley, 2010). Peter Morville, falando de Arquitetura de Informações, relata o mesmo problema (Intertwingled, 2014). E o que dizer da Análise de Negócios? Que ela deu um tiro no pé quando publicou uma Extensão Ágil. Confessou uma culpa que não deveria ter. Pau que nasce torto…

A acusação ficou chique e mereceu até sigla: BDUF (Big Design Up Front). É importante destacar que a acusação não é vazia. É preciso lembrar o contexto que motivou o Manifesto Ágil. Era comum, naquele tempo, um mal conhecido como Analysis Paralysis. A burocracia emperrava pacas. Projetos entregavam bulhufas.

A diferença entre o remédio e o veneno é o tamanho da dose. Erramos a mão e criamos outro mal, a Agile Death Spiral. Sprints sem fim ou fins. Pivots mil. Um desastrado foco na eficiência que ignora o primordial: ao fazer a coisa errada do jeito certo, só estamos acelerando rumo ao desastre.

Entre a cascata congelada no tempo e o pós-moderno ciclone da morte deve haver um caminho.

Equilíbrio

A sugestão do Yin-Yang é de Peter Morville, no livro já citado. A imagem combina bem com a matriz apresentada no artigo anterior. Que esteja subentendida a necessidade de iterações. O ícone também informa que há construção nos momentos iniciais. E que não é proibido rever o problema e repensar os planos nos momentos seguintes.

Esse equilíbrio bem zen seria perfeito se o alerta do Brooks não continuasse verdadeiro: aquela primeira metade (escura) é a mais crítica para o sucesso de um projeto ou produto. Mas ela não existe no Scrum, por exemplo³. O que nos levou a entender que bastaria puxar para o domínio do problema o mesmo esquema utilizado no domínio da solução. Vêm daí os sprints 0, -1 etc. Essas iterações podem ser úteis para a realização de spikes (experimentos), configuração do ambiente e coisas do tipo. Mas não têm nada a ver com o domínio do problema. O que é conhecido como grooming também não.

Sprints com duração fixa de uma, duas ou quatro semanas fazem muito sentido nos trabalhos de DESENVOLVIMENTO e ENTREGA. Mas viram camisas de força nos trabalhos de DESCOBERTA e EXPLORAÇÃO. Nesses momentos, é comum a necessidade de cinco ou dez iterações em uma única semana. Marty Cagan, em Inspired (Wiley, 2017) fala em até vinte iterações. Jake Knapp, em Sprint (Intrínseca, 2016), nos mostra um ciclo completo acontecendo em uma semana. Enfim, a variedade aqui é grande. E necessária.

O Design Thinking nos oferece ampla variedade de métodos e ferramentas para o Domínio do Problema. Não foi por outro motivo que Jonny Schneider, da Thoughtworks, propôs a seguinte combinação:

  • Design Thinking: para explorar o problema
  • Lean: para construir a coisa certa
  • Agile: para construir do jeito certo

Legal. Mas o Manifesto Ágil não fala em eficácia logo no seu primeiro princípio? As propostas Lean não parecem preocupadas com eficiência? O Design Thinking não tem o que contribuir para o domínio da solução? A ideia do Schneider é promissora. A mensagem “Lean E Agile” ao invés do OU é correta. Mas a divisão de responsabilidades proposta acima não faz o menor sentido. 

Acho que nós precisamos de outro enfoque, mais amplo e inclusivo. Precisamos de um modelo que incorpore, sem puxadinhos, uma legítima preocupação com o domínio do problema. Que faça a gente “se apaixonar pelo problema, não pela solução“.  Bom tema para o próximo artigo.

Notas

  1. No artigo No Silver Bullet, transformado em capítulo da edição comemorativa de The Mythical Man-Month (Addison-Wesley, 1995). Este trabalho, lançado originalmente em 1975 (!), acaba de ganhar nova edição em pt-br: O Mítico Homem-Mês (Alta Books, 2018). Parafraseando Brooks: a longevidade desse livro atesta que a gente continua caindo nos mesmos buracos…”
  2. São algumas sugestões apresentadas por Patrick Steyart em Essential Upstream Kanban.
  3. Que fique claro: não se trata de um bug do Scrum. A omissão é intencional. E só vira um problema se a gente a ignorar. Ou, pior ainda, se a gente esticar o Scrum para cobrir o buraco.
  4. Se apaixone pelo problema, não pela solução” é uma das dicas de Marty Cagan em Inspired (Wiley, 2017).
  5. hole in the wall é o título da óbvia imagem de hoje.