Parte 1.1 da palestra “O Futuro não é mais como era Antigamente“. Tanto no evento quanto no artigo anterior, “O Clube da Esquina Globalizada“, não explorei como queria este ponto, que trato genericamente como o “cubículo global”. Espero preencher a lacuna com este artigo. Lembrando que a palestra é sobre Engenharia de Software e minha (retórica) questão é: nossas teorias, métodos e práticas resistem ao confronto com as pessoas e tecnologias de hoje?

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Surrupiei o título de um artigo da ZapThink. O “Cubículo Global” seria uma das cinco “supertendências” da TI corporativa. O texto da ZapThink reconhece que se trata de uma tendência “com mais de 100 anos de idade”. Afinal, desde a invenção dos telégrafos e telefones o trabalho remoto e a colaboração à distância se tornaram possíveis e viáveis. Os avanços tecnológicos possibilitaram que colaboradores espalhados ao redor do globo trabalhem como se estivessem em uma mesma sala. Mas a tecnologia, neste ponto, serviu apenas para pavimentar o caminho para uma mudança maior e mais significativa. Uma grande mudança cultural está acontecendo, à revelia das organizações, e seu impacto na área de conhecemos como Engenharia de Software não pode ser desprezado.

De todas as grandes e muito bem vindas provocações colocadas por Don Tapscott e Anthony Williams em “Wikinomics – Como a Colaboração em Massa pode Mudar o seu Negócio” (Nova Fronteira, 2007), existe uma que deveria ser lembrada diariamente pelas empresas: por mais talento que você contrate e retenha, sempre haverá mais inteligência lá fora do que aí dentro.

Muito se fala sobre uma guerra de talentos, sobre a necessidade de uma empresa formar e tentar segurar pessoas que fazem a diferença em um mundo de hipercompetição. É claro que este tema merece a posição que ocupa na agenda das organizações. O problema, particularmente quando falamos sobre desenvolvedores, é que a cada dia eles têm mais motivos para estar fora. Não estou dizendo que todos os desenvolvedores se tornarão freelancers ou microempresários. Mas parece inevitável que um contingente de alguns dos melhores talentos da área decrete sua independência. De maneira aparentemente irreversível.

Em primeiro lugar, de todos os trabalhadores do conhecimento, ninguém parece se incomodar mais com o “gap cultural” diagnosticado por Domenico De Masi¹ do que os desenvolvedores. Para entender: este gap é um fenômeno que “constrangeu os atuais knowledge workers, os trabalhadores do conhecimento, a se organizarem segundo os velhos princípios industriais”. O desenvolvimento de sistemas requer criatividade. É interessante notar que em doses cada vez maiores. O que torna legítima a insatisfação de seus praticantes com muitos processos e “metodologias” que lhes são impostos. Comando e controle não combina com criatividade. Mas esta é apenas uma parte do gap.

Vários desenvolvedores têm em suas casas, bolsos e mochilas mais tecnologia, ou tecnologias mais modernas e atraentes do que aquelas utilizadas pelas empresas. E é indissociável do programador a vontade de trabalhar com o que é novo e desafiador. Me mostre um programador “conservador” e eu te mostrarei um cara que não hesitará em mudar de profissão na primeira oportunidade.

Empresas que têm software n’alma (e no núcleo de seu negócio) sabem que os “velhos princípios industriais” seriam seríssimos impedimentos para seu sucesso. É por isso que na Google, Microsoft e em outras empresas notáveis há um zelo extremo com o ambiente de trabalho. Videogames e quadras de jogos, salas de “descompressão”, restaurantes e lanchonetes, salas de reunião e mobiliário. Tudo é pensado e desenhado para atrair e reter as melhores pessoas. Nem vou falar sobre remuneração. Mas sua vagas são limitadas. O que farão as centenas de milhares ou milhões de desenvolvedores que elas não contratam?

Alguns já viram na App Store da Apple e no Marketplace da Google a resposta. Alguns? Só a loja da Apple já contabiliza mais de duzentas mil aplicações e cinco bilhões de downloads. O lançamento do iPad e a dinâmica da Apple fazem crer que essas curvas estão longe da estabilização. Tendo em vista que cada aplicação tem um mercado potencial de milhões de usuários ao redor da Terra, não é exagero supor que uma aplicação bem sucedida pode significar a aposentadoria para um desenvolvedor. Claro, para a maioria isso não passará de um sonho. Mas muitos tentarão a sorte. Aliás, já estão tentando.

O Melhor dos Mundos

No artigo anterior citei pesquisa da FGV que fala em um déficit de 800 mil profissionais só no Brasil. Acima cogito a possibilidade de uma debandada de outros tantos talentos. Como ficarão as empresas, tenham elas o software como atividade fim ou não?

Não vejo mudanças muito significativas no curto prazo. O brasileiro, apesar da fama dizer o contrário, é muito conservador. Particularmente quando se trata de TI. Mas é possível projetar (ou seria torcer por?) um panorama bem diferente em um horizonte de três ou quatro anos. Organizações vão querer contar com aqueles reconhecidos talentos em projetos pontuais. Aquelas que têm o software como seu negócio central criarão redes de colaboradores virtuais. A localização física deles não terá importância nenhuma. Relevantes serão seus conhecimentos especializados e, em diversos casos, os ativos de software que cada um possuir. Uma equipe pode ser formada por um desenvolvedor de Blumenau, outro de San Francisco e um designer de Pádua, na Itália. Localmente ela só precisará de alguém que faça a ponte com o(s) cliente(s) e usuários. Isso soará bobo e romântico para alguns (Pádua?!?) e como notícia velha para outros que já trabalham assim não é de hoje². O que projeto é o crescimento considerável deste tipo de arranjo produtivo. Grandes fábricas desantenadas terão que concorrer com redes de oficinas (ou boutiques) especializadas. Vários componentes das redes serão empresas de uma pessoa só.

Empresas que não têm o software como atividade fim terão mais opções de compra. A era dos projetos mastodônticos e milionários vai tarde mas vai. Já foi! Assim como a era das arquiteturas fechadinhas e repletas de ângulos retos. Tudo isso abre espaço para a participação de pequenos mas talentosos agentes criativos que nas horas vagas tentam a sorte nas roletas da App Store, Google Marketplace e afins. Para o comprador é um tipo de paraíso porque ele conta com um talento comprovado e sem o tradicional “overhead” daquelas empresas de RH que se disfarçam de solucionadoras de pepinos de TI. Para o pequeno agente criativo é também um paraíso porque ele não precisa fingir que acredita nem se submeter aos processos e juras daquelas tradicionais empresas de RH que fingem saber tudo de TI. Ele vende direto, pode colocar preço em seus produtos e serviços e seguir seus processos e práticas sem depender de nenhum amém. Amém? Inté!

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Observações:

  1. Criatividade e Grupos Criativos“, Sextante, 2002. Há tempos não citava este trabalho por aqui. É um tijolão de quase 800 páginas que deveria ser lido por tudo mundo que quer falar sobre inovação e criatividade. Pena que De Masi só seja lembrado pelo “ócio”… Beócios!
  2. Tem uns 4 anos que uma grande empresa multinacional me contratou para avaliar a adequação de uma aplicação aos seus processos. Me escolheu exatamente porque fazia pouco tempo que eu a havia estudado (analisado seu negócio). A empresa que queria vender a solução teve que me dar acesso a uma versão completa da solução e também ao código fonte. Eu tinha aqui os mapas dos processos que eu mesmo havia desenvolvido. Em pouco mais de 3 dias elaborei todo o trabalho. Sem ver a cara de ninguém. Só precisei sair de casa, daqui de Varginha, pra colocar a NF no Correio. Hoje, com as notas eletrônicas, nem isso seria necessário. Só desfilei o lero-lero para ilustrar um pouco mais a afirmação: a localização do trabalhador do conhecimento é irrelevante em um número cada vez maior de situações.
  3. Another day at the office” é o nome do Cartoon utilizado hoje, do HikingArtist.