Quando vivemos em tempos de abundância de crises, é natural que algumas delas passem totalmente desapercebidas. Ponto minúsculo e silencioso no radar não chama atenção. Mas ele será lembrado quando o estrago já estiver feito. Há uma crise na relação entre empresas e seus fornecedores de serviços de desenvolvimento e manutenção de sistemas. É fato, esse relacionamento nunca foi harmonioso. Mas parece que estamos chegando no fundo do poço – naquele momento em que, mais do que debatida, a relação deveria ser totalmente revista.

Tentarei ilustrar a situação com uma breve história.

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Era uma vez uma empresa de médio para grande porte repleta de sistemas. Como é tradicional, a parte “feijão com arroz” do negócio (processos de apoio – financeiro, contábil, RH…) foi informatizada com um pacote ERP; A parte “filé com fritas” (processos primários – vendas, atendimento…) é um combinado de módulos desenvolvidos internamente com algumas soluções de terceiros. Antenada por necessidade, a empresa em questão, que chamaremos de ACME, já usa mas pouco abusa de conceitos modernos como SOA, BPM e BI.

Assim como acontece em praticamente todas as organizações ao redor do globo, a “Arquitetura Corporativa” da ACME assemelha-se ao retrato do inferno devidamente registrado por uma câmera de 12 megapixels. Consequência natural de anos e anos de projetos “para ontem”, adoção de caixinhas mágicas, fornecedores famintos e voluntariosos e algumas pitadas de modismos. A receita pode variar um pouquinho de empresa para empresa, mas o prato parece ser sempre o mesmo. E é indigesto.

A demanda por manutenção (80%) e novas aplicações (20%) é sempre maior que a capacidade instalada. Fornecedores devidamente homologados adoram essa parte. Afinal, “fábricas de software” (sic) foram inventadas para isso mesmo, certo?

Software é um elemento vital para a ACME. Aliás, deve ser para 80% das empresas. Mas ele ainda não é visto como ativo, como conhecimento. Software é contabilizado como despesa. E é tratado como tal: um mal necessário. Então a ACME brinca de fazer de conta que mantém o cérebro e terceiriza membros, mais precisamente os braços. Traduzindo: uma equipe interna definiria o que precisa ser feito; o “como” e respectiva construção seriam executados por “parceiros”. (Há palavra mais maldita que essa em nosso mundo?)

Acontece que o cérebro é pequeno e fica cada vez menor. Para cada neurônio disponível para “coletar requisitos” (sic), existem dezenas ou centenas de usuários putos da vida, atrasados, indecisos e com hora marcada no psicólogo. Quando muito, uma reunião(zinha) de 1 hora é tudo o que o neurônio tem para entender o que o usuário quer. Desse entendimento nasce um briefing. E dele extrai-se um “cheiro” que, como num passe de mágica, vira compromisso de prazo e custo. Tudo acontece tão rápido que o neurônio nem tem tempo de suspirar.

Com um olho na fila de usuários que aguardam sua vez de choramingar requisitos, o neurônio repassa para o parceiro selecionado por um critério qualquer aquele conjunto de parágrafos desconexos apresentados anteriormente como briefing. Sim, a escassez de neurônios é tamanha que cabe ao parceiro “fechar o escopo” (sic). Com um pouco de insistência e um tanto de sorte o parceiro consegue um ou dois encontros com usuários para desenvolver “casos de uso”. O papo é menos belicoso que aquele entre usuários e neurônios porque o parceiro é “de fora”. Mas, talvez para mitigar riscos de rusgas, o parceiro sempre manda um analista diferente. O rodízio deve seguir a lógica do namoro de jogador de futebol. Mas os usuários já se cansaram de dizer que “eu já expliquei isso antes…”

Tão logo o parceiro se manifeste satisfeito com as informações coletadas (implicitamente ele tá de saco cheio daquelas idas e vindas), tem início um hiato de duração indeterminada (apesar do cronograma assinado).

É marcado para um belo dia (e precisa ser belo mesmo – porque, se ameaçar chover, o parceiro nem tira o carro da garagem) a apresentação do projeto. Dependendo da cara (e do bolso) do sponsor, o evento tem lá suas regalias. Na maior parte das vezes, é só um encontro do parceiro com alguns usuários e um cafezinho. O neurônio autor do briefing é convidado a participar. Claro, se ele ainda estiver na folha de pagamentos da ACME.

O encontro é tenso. Já começa nervoso. E os usuários não colaboram com o clima: “Nossa, atrasou tanto desta vez, né?”

Num caso específico a apresentação começou por uma parte bem complicada do projeto: uma tela de cadastro de clientes. O usuário do departamento de marketing mal esperou a tela acabar de ser “renderizada” (sic) e já reclamou: “Nossa logomarca sofreu pequenas alterações há 6 meses. Adequação para a nova realidade Web 2.0 e patati patatá…”. Foi interrompido. O parceiro falou que ninguém avisou. “Mas é uma pequena alteração besta…”, disse, tentando encerrar o assunto. Afinal, o importante era o conteúdo! O cara do marketing não concordou, mas silenciou.

Para testar o conceito de usabilidade o parceiro pediu que um outro usuário, sem nenhum treinamento, fizesse o cadastro de um cliente. Claro, ele escolheu a menininha mais bonitinha que estava na sala. E quase pegou em sua mão para guiar o mouse na direção do botão “Incluir”. “Por que esse botão tem a cor diferente dos outros?”, questionou a bela. Não mereceu resposta, mas seguiu em sua nobre tarefa.

Até que, após digitar nome, CPF e logradouro do namorado (para infelicidade do parceiro), se deparou com uma combo box onde ela deveria selecionar a Unidade da Federação. Clicou na setinha e viu uma lista mais ou menos assim: SP, BA, MG, RJ, DF, RS, SC, AC, RR, PA, MS, AM…

Não se sabe quem disparou primeiro, se o neurônio, a bela ou o cara de marketing. Talvez tenha sido um coro: “Caramba, por que a lista não está ordenada?”

O parceiro engoliu seco e sacou da mochila importada um calhamaço manchado e cheio de dobras que apresentava na capa a logomarca da ACME (desatualizada) e o nome do projeto. Passou pelas (33) páginas do caso de uso em questão – de trás para frente e de frente para trás – e cravou: “Não tá escrito aqui que a lista deveria ser ordenada. Isso é mudança de escopo!”

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A história acima é uma ficção baseada em fatos reais. Só as trechos mais exagerados são verdadeiros.

A foto utilizada, “Lift Shaft Within the Old Town Hall Tower”, foi devidamente surrupiada de lostajy. Ela foi liberada com licença Creative Commons.