Caso tenha perdido, aqui está a primeira parte. A encerrei relacionando quatro impedimentos para a adoção do Scrum na empresa YYZ (nome alterado). Importante lembrar: mais que ao Scrum, são impedimentos para a realização de sete objetivos da área de TI daquela empresa. O Scrum é só (!) um possível meio de atendê-los. Dos quatro ‘bloqueios’, um é mais crítico: os times consomem aproximadamente 80% de seu tempo cuidando de problemas do dia a dia. Como proteger os times? Há uma forma de blindagem minimamente inteligente? Abaixo, o desenrolar do enrolado causo.

O impedimento crítico foi apresentado para uma equipe de coordenadores – quase todos os responsáveis pelos onze times que formam aquela unidade de TI. Seguiu-se um debate sobre alternativas de solução – opções de blindagem.

A primeira, aparentemente bastante simpática aos coordenadores, considerava a alocação de poucos membros (20%) de cada vertical para o atendimento das demandas emergentes / urgentes. Além disso, todos os times dedicariam cerca de 20% de seu tempo para essas questões. Era, com certeza, a alternativa que menor impacto causaria na estrutura atual.

O diagrama¹ acima destaca duas restrições principais para a sugestão. A primeira é “matemática”: mesmo que destacássemos 20% dos membros do time mais 20% do tempo de toda a equipe para cuidar dos requisitos urgentes, não seria possível atender todas as demandas (lembre-se: elas consomem atualmente 80% do tempo útil de todo o time). A consequência natural seria o acúmulo de demandas não atendidas, seguido do aumento da insatisfação dos usuários e assim por diante. Além disso, há o aspecto cultural que não pode ser negligenciado. Ele foi destacado na primeira parte: a empresa YYZ tem uma (honorável) política de portas abertas. Todo mundo pode falar com todo mundo praticamente a qualquer hora do dia (e da noite!). Fazer com que os usuários falassem apenas com determinados membros e/ou em período pré-determinado vai contra uma cultura estabelecida de longa data.

A mesma questão cultural aparece como impedimento para a alternativa #2. Nela, conforme sugerido pelo responsável pela área de TI, todas as demandas seriam encaminhadas para a área de help desk. Muitos dirão que já deveria ser assim. De certa forma, é. A área de suporte da YYZ recebe uma média de seis mil (6k!) chamados por mês, 1500 deles relacionados ao ERP. E consegue fechar (bem) algo em torno de 85% deles. O resto? Sobra para as verticais de negócios. E junta-se aos requisitos que os usuários preferem apresentar de maneira direta (em uma mistura de demandas ditas “evolutivas” com simples alterações de telas, pequenos bugs etc). Como adiantei, há a questão cultural: os usuários não podem ser impedidos de se relacionar com as verticais que os espelham em TI. Mas há uma segunda e mais grave restrição para a segunda alternativa. Falta gente. Mais: falta gente qualificada. Cheguei a sugerir o deslocamento de analistas de negócios e desenvolvedores para lá. Propus engolindo. E engoli seco. Ninguém aceitaria um movimento que tinha cara e jeito de “rebaixamento”, por nobre que seja o serviço de suporte. O treinamento de novos integrantes foi cogitado. Mas, como o diagrama tenta indicar, é coisa que toma tempo. Muito tempo.

Sobrou a terceira alternativa. Aquela que, como consultor, defendi. Partindo do princípio de que a blindagem total dos times é impossível, não resta outra opção que não seja a criação de um novo time. Um time que seja desconhecido pelo negócio e respectivos representantes. Ou seja, além de blindado ele também é invisível². Desta forma as verticais de negócios cuidariam exclusivamente do cotidiano – atendimento aos usuários e solução de pequenos problemas. Seriam também a porta de entrada para as chamadas “demandas evolutivas”. Para tanto, seguiriam contando com pessoal capaz de executar atividades de análise de negócios. Talvez um pouco mais que isso. O coordenador de cada área poderia vir a ser um Dono do Produto (Product Owner ou simplesmente PO, como queira). Eu sei, eu não curto muito esse papo de dublê de PO. Mas, neste caso, dado o invejável conhecimento do negócio que cada coordenador apresenta, os riscos inerentes ao desenho eram consideravelmente reduzidos. E haveria outro benefício: o novo time seguiria de fato invisível. Mas, quem integraria o novo time?

Você se lembra que os coordenadores estavam dispostos a “sacrificar” 20% de seu time para cuidar exclusivamente das demandas não previstas? Bom, se pegarmos 20% de cada uma das sete verticais de negócios (que têm, em média, 8 integrantes) mais o time de controle de qualidade (pelo menos 60% dele – seis profissionais) temos uma nova composição com cerca de 17 pessoas. Praticamente 3,5 times de Scrum (considerando o tamanho ideal sugerido: 5 (+/- 2)). Claro, este time seria multidisciplinar, auto-organizado, dono de seus processos e, o mais importante, orientado por um e apenas um Product Backlog. Quase sem querer (querendo!) já atendemos o objetivo #1 da lista que foi apresentada na primeira parte: “Ter uma fila única de demandas”. Dois coelhos, talvez alguns mais, numa única porretada. Parecia tudo muito bom para ser verdade. Quais restrições para esta alternativa foram apresentadas?

“Esse time não teria real domínio do negócio”, disseram alguns. Oras, para isso existem os PO’s e seus asseclas (analistas de negócios e afins), certo? Além disso, o novo time é formado por gente que já tem, em média, três anos de casa. E são provenientes de todas as verticais de negócios, o que representa um certo conhecimento e visão do todo. Sinceramente, isso não é restrição que se apresente. Porque ela não para em pé. Então, uma segunda restrição – aparentemente mais forte – foi colocada: “O <nome_do_responsável_por_ti> não quer que demandas evolutivas sejam separadas das corretivas”; “Além disso, o <nome_do_responsável_por_ti> não permite em hipótese nenhuma que duas equipes trabalhem nos mesmos artefatos“. Quantos traumas, quantas noites mal dormidas e quantos sistemas bisonhos de controle de versões são necessários para criar restrições tão… sei lá. Prefiro não adjetivar. Assim como preferi não gastar meu tempo com um estudo antropológico daquelas raízes pré-históricas. Me limitei a lembrar Peter Senge: “Os problemas de hoje vêm das soluções de ontem.

Percebi que não se tratava apenas de restrições do <nome_do_responsável_por_ti>. Os próprios coordenadores não gostaram nadinha da ideia de um novo time. Um time que provavelmente viveria sem a figura de um coordenador e que ficaria com o filé, enquanto eles seguiriam com o feijão com arroz do cotidiano. A antipatia deles pela sugestão é perfeitamente compreensível. Mas não é justificável.

Faltou a eles enxergar um pouquinho além e entender que este desenho, como todos os outros, é temporário. Não entenderam que o novo time seria um “super” prestador de serviços para eles. E faltou acreditar que, com o tempo, o novo time poderia ser gradativamente incorporado às suas unidades. E que isso seria possível tão logo o tempo de resposta fosse reduzido para prazos que excedessem minimamente as expectativas dos usuários; o que os levaria para a fixação de acordos de níveis de serviços (objetivo #4 da lista original). Antes que você me chame de ingênuo e/ou simplório: resumi veredito e consequências.
{Mas, caso queira explorar um pouco mais esta parte, por favor, comente! Acho que o assunto é bom demais para morrer aqui, só com minhas palavras.}

Algumas Referências para a Alternativa #3

Pois é, o artigo está ficando mais longo que o usual. Mas não quero fazê-la(o) esperar por uma terceira parte. Conto com mais um pouco de sua atenção.

Já tem um bom tempo, creio que quatro ou cinco anos, que li um artigo sobre uma grande mudança que estava acontecendo na Promon. Eles estavam “duplicando” várias gerências. Uma cuidaria do dia a dia. A outra, nova, trabalharia apenas no “amanhã”. Me apaixonei pela ideia mas, infelizmente, não vi mais nada a respeito. Sei lá se foi mantida, muito menos o que conseguiram. Temo que, por considerar apenas os gerentes, a coisa não tenha vingado.

Mais recentemente começaram a pipocar artigos e teses sobre “organizações ambidestras“. Apesar de algumas interpretações meio tortas e rebuscadas, a proposta central parece ser a mesma: separar o presente do futuro. E fazer com que as organizações trabalhem nas duas frentes com a mesma atenção e dedicação. Não necessariamente com o mesmo volume de recursos. Mas, desejavelmente, com princípios e processos em comum.

Sinceramente, não vejo alternativa que não passe por uma divisão assim. O problema com esse tipo de mudança é que ela é drástica. O que significa dizer que a resistência a ela será igualmente forte. Pensando Scrum ou, mais precisamente, pensando Lean, não estamos mais falando de Kaizen (melhoria contínua) e sim de Kaikaku (mudança radical). E o que é necessário para a implementação de uma mudança radical? Coragem; sangue frio; apoio dos altos escalões; comprometimento com a solução… A lista é longa e não é estranha para você que conhece mudanças. Por isso vou tocar em um ponto relativamente incomum: quem promove uma mudança radical não alimenta a ilusão de que não haverão “mortos” e feridos. Muitos pularão do barco. E isso não é necessariamente ruim.
{Está aqui outro ponto que podemos discutir bastante, não?}

Epílogo

Se você respeita o jeito Lean de pensar, então sabe que não pode tratar problemas (impedimentos ou bloqueios) com remendos rápidos e muito menos fazer vista grossa para eles. Você deve, literalmente, “parar a linha”, analisar as raízes do problema, encontrar e implantar uma solução para ele. Foi o que aconteceu com este serviço de consultoria. Interrompemos o processo, eu parei meu “relógio”, apresentei e propus discussões sobre os impedimentos. Um mês. Dois meses. Três meses…

Fiquei sabendo que o <nome_do_responsável_por_ti> foi transferido para outro negócio da YYZ. Não sei dizer se as restrições que ele defendia permaneceram. Creio que não. Mesmo assim, não acredito que minha sugestão tenha uma nova chance. É assim mesmo: quantas vezes já fomos aconselhados a ter uma vida mais saudável, menos sedentária, mais preocupada com o amanhã? E quantas vezes seguimos os conselhos? São poucos os consultores, pais, esposas, médicos e afins que são de fato escutados. Menor ainda é o número dos que recebem prêmios milionários por seu poder de persuasão e objetivos alcançados.

Observações:
  1. Não julgue o “diagrama” rabiscado, please! É só um resumo da apresentação das três alternativas e respectivas restrições. E, sim, é um Causal Loop Diagram (Diagrama de Círculos Causais). Caso você não conheça, a “o” (bolinha) ao lado de uma linha significa força (ou feedback) contrário (ou negativo). O “c” significa uma restrição (ou constraint). É uma ferramentinha que, pelo visto, está ganhando novo impulso. Na última segunda vi Jurgen Appelo utilizá-la para mostrar como esse negócio de desenvolver software é “doomed”. Mas pode ser salvo! Craig Larman também usou e abusou dela em seu último livro, “Scaling Lean & Agile Development” (Addison-Wesley, 2009).
  2. O aspecto “invisível” (do novo time) é desejável neste caso específico. Não o indicaria em ambientes que não tenham uma política tão aberta e generosa de “relacionamentos muitos-para-muitos 24×7”. Insisto, na YYZ o time só estaria 100% blindado se fosse “invisível”.
  3. Trainee hatchings” é o título do cartoon de hoje. Como sempre, foi surrupiado do HikingArtist.
  4. Aquele xampu segue me provocando com o seu “Sistema de Blindagem Inteligente”.