A primeira parte apresentou negócios como sistemas complexos, alguns princípios e guias fundamentais e as abstratas fronteiras de um negócio. O tema de hoje é a função do sistema-negócio, aquilo que no linguajar clássico chamamos de Missão. Das três partes básicas de qualquer sistema – as outras duas são estrutura e processos – esta é classificada como menos visível e mais importante. Lembrando o Guia #3: Porque é ela, a função-missão, que dá forma e sentido para todos os demais componentes de um sistema-negócio.

Razão Social = Missão

Exemplo #1: “Organizar todas as informações do mundo e facilitar o acesso a elas” – Google
Exemplo #2: “Refrescar o mundo” – Coca-Cola

Ficaria feliz se um professor de história ou um pesquisador menos preguiçoso que eu contasse a origem do termo Razão Social. Desconfio que ele venha lá dos tempos do império, de quando a maioria dos empreendimentos eram projetos, ou seja, tinham data para fechar as portas. Se assim fosse, “Construir o Colégio Pedro II “ seria um belo exemplo de “razão social”. Porque nenhuma parte interessada faria muito esforço para entender o propósito daquela iniciativa.

Nossos tempos são outros e um tanto insanos. Não é raro encontrar trabalhadores que não sabem a real motivação de seus projetos. Terrivelmente mais comum é a total alienação (ignorância) em relação aos objetivos da empresa. Isso parece ser resultado, na maioria dos casos, de uma infeliz combinação de conveniências. Para os donos, que acham que funcionário não tem que se meter nesse papo. E para os funcionários, que parecem ser motivados exclusivamente pelo dinheirinho que pinta até o quinto dia útil de cada mês. As partes (des)interessadas não parecem perceber que as razões de tantos problemas e de tanta insatisfação brotam dessa alineação consentida ou imposta. Pena.

Mas é apenas um reflexo natural. Guia #7: Todos os sistemas vivos compartilham uma mesma função primordial: sobreviver. Quando não há conhecimento ou comprometimento com uma função mais específica, os subsistemas (as pessoas) e o próprio sistema (negócio) trabalham no sentido de realizar somente sua função default: sobreviver. Quando muito, crescer e multiplicar¹. Pena.

Porque todo negócio tem uma missão maior e mais nobre a realizar. Quando alguém abre uma empresa, recebe uma licença da sociedade para realizar determinada função. Acho que ninguém ainda teve a coragem de registrar como razão social: Preciso garantir o leitinho das crianças e Cia. Ltda. ou Quero ficar rico e f0ð@-$€ S/A! Não é assim que funciona. Se a sociedade não perceber valor em um negócio, ele definhará.

Há tempo o termo Razão Social perdeu seu sentido original. Hoje vemos uma combinação quase ilegível de palavras (muitas em outras línguas) que nunca expressam a motivação para aquela empresa existir em nossa sociedade. Daí aos consultores que ajudam a “definir missões” foi um pulinho. Dos “consultores” às declarações de missão genéricas, insípidas e/ou hilárias foi um salto ainda menor. Diz aí, você conhece alguém que saia da cama de manhã, neste frio, e vá trabalhar energizado porque a declaração de missão de seu empregador diz que²: “Faremos produtos diferenciados de classe mundial usando equipes motivadas num novo paradigma de Qualidade Total até nos tornamos os líderes da indústria”?

Em um sistema social ideal, uma pessoa física empresta seu tempo, esforço e inteligência para uma pessoa jurídica porque acredita em sua missão. Este é o primeiro e mais importante fator de alinhamento entre um sistema-negócio e todos os seus subsistemas e componentes. Mas não é o único, como veremos na sequência desta série.

Missão <> Visão

É através de sua função-missão que um sistema-negócio tenta realizar seus objetivos. Um conjunto de objetivos, posicionados em um momento futuro, é o que chamamos de Visão. Esses objetivos, se e quando realizados, darão uma nova cara ao negócio – uma nova visão. Portanto, missão é o meio e a visão representa os fins.

Outra diferença fundamental está no aspecto temporário da visão. Enquanto a missão é perene, existem algumas com mais de 300 anos de vida³, a visão precisa ser renovada de tempos em tempos. Algumas empresas, como a Petrobras, precisam trabalhar com horizontes de 10 ou 20 anos. Outras, em tempos de infinitas crises, parecem redesenhar sua visão a cada trimestre.

Se nosso Guia #2 nos lembra que os componentes de um sistema-negócio são interligados por informações, está nos poucos elementos ilustrados acima o conjunto de informações mais crítico para uma empresa. Está colocado ali o que o negócio busca (objetivos e visão), como ele fará o trabalho (estratégia) e por quê (missão). Um pequeno exemplo:

  • Visão e Objetivos: ter participação relevante (>30%) nos mercados de dispositivos móveis e de navegadores (browsers) Web de uso geral em um prazo de X anos;
  • Estratégia: adquirindo, desenvolvendo e distribuindo gratuitamente um sistema operacional para dispositivos móveis e um navegador multiplataforma;
  • Missão: porque nossa missão, além de organizar todas as informações do mundo, é facilitar o acesso a elas. As opções atuais de acesso não atendem nossos propósitos porque, além de outros fatores, são lentas, inseguras e/ou fechadas.

Imagine como a Google poderia ser uma empresa bastante diferente se sua missão fosse outra, como por exemplo: “Ser líder do mercado global de publicidade on-line”; ou ainda “Ser o maior e melhor mecanismo de buscas do mundo“. Visão e estratégia permaneceriam as mesmas do exemplo acima? É pouco provável.

Proposta de Valor

Um sistema-negócio apresenta sua função-missão embalada em uma proposta de valor. Essa proposta representa um posicionamento, um fator de diferenciação. É um grande como, a base de todas as estratégias e decisões. Existem apenas três modelos dos quais derivam todas as propostas de valor. Eles se baseiam em:

  • Inovação: em tecnologia, produtos e/ou serviços. Exemplos tupiniquins: Embraer e Natura. Estrangeiras: Apple, 3M, Virgin America (aviação), Whole Foods Market (varejista) e Starbucks.
  • Clientes: empresas que usam este modelo dependem da manutenção de relacionamentos estáveis e duradouros com clientes. Existem duas variações:
    • Soluções Completas: lembre-se de nossos bancos, com suas ofertas de investimentos, seguros, financiamentos etc. IBM e HP são outros bons exemplos.
    • Aprisionamento: de imediato pensamos nos draconianos contratos das empresas de telecomunicações. Mas é interessante notar que Microsoft, Google e Sony (Playstation) – cada uma a sua maneira – também são exemplos da proposta de aprisionamento (feito através de plataformas, não de contratos).
  • Preço: por último, a proposta que parece onipresente em solo tupiniquim. Empresas que utilizam este modelo caracterizam-se por oferecer baixo custo total e/ou facilidade nas transações. Casas Bahia e Extra são exemplos evidentes. Lá fora: Southwest Airlines, Wal Mart e McDonalds.

É preciso ressaltar que os modelos acima não são e não precisam ser mutuamente exclusivos. O fato de uma organização orientar sua atuação por um modelo não a impede de utilizar outro. Um bom exemplo é a Apple, notória por inovar mas que usa com extrema eficácia o modelo do aprisionamento. Um sistema sociocultural verdadeiramente ativo, com autonomia sobre meios e fins, não se prende a modelos unidimensionais. A classificação acima representa outro conjunto artificial de fronteiras que deve ter feito sentido em algum momento do século passado. Os negócios dos novos tempos serão cobrados por sua capacidade de inovar, por apoiar seus clientes e por precificar produtos e serviços de maneira justa e coerente.

A proposta de valor é intencional e muitas vezes escrachada (“mais barato, mais barato… Extra!”). A percepção de valor pelo mercado e, principalmente, pelos clientes, pode confirmá-la ou não. É o comportamento do sistema-negócio que atesta sua proposta de valor, não os slogans, jingles e blablablás retóricos. Guia #8: O propósito de um sistema é deduzido de seu comportamento, do que ele de fato faz e como o faz, não do que promete fazer.

Sinceras ou não, missão, visão e proposta de valor influenciam ou definem todos os outros componentes de um sistema-negócio. Na próxima semana conversaremos sobre o mais visível deles, a estrutura. Até lá!

 

Notas

  1. Crescimento e multiplicação não significam desenvolvimento e amadurecimento. Pense em nossas cidades ou no câncer, por exemplo. Quase escondo aqui o Guia #9: Todo sistema é finito e nem todo crescimento é saudável ou desejável. Quando pensamos assim, nos perguntamos porque governos e mídia especializada só sabem falar sobre crescimento do PIB.
  2. Adaptado de um dos vários exemplos detonados por Scott Adams, criador do Dilbert.
  3. O grupo francês Saint-Gobain, por exemplo, tem a mesma missão desde 1665.