Terceira parte de um total de seis. Na anterior vimos a função-missão de um sistema-negócio. O tema de hoje é a estrutura do negócio, seus componentes e inter-relações.

Das três partes que compõem qualquer negócio, a estrutura é a mais visível e inteligível. Afinal, ela é composta apenas por pessoas e coisas. É muito mais fácil ver os componentes de um sistema do que suas interdependências e processos. Talvez por isso as organizações e seus sistemas gerenciais se ocupem quase que exclusivamente da estrutura – do planejamento e controle dos recursos corporativos. Eles sabem tudo e mais um pouco sobre seu patrimônio e verbas. E quase nada sobre seus próprios verbos. Contam centavos de cada centro de custos. Mas ficam abobados ou horrorizados quando questionados sobre os custos de suas atividades (ABC)¹.

Isso parece ser uma questão cultural com raízes profundas. As línguas ocidentais, por exemplo, privilegiam pessoas e coisas – sujeito e objeto – em detrimento do verbo. Valorizamos a posse mais que a ação. Vários exemplos ilustram nossa preferência:

  • Poder parece sinônimo de posse (de verbas, recursos, informações etc);
  • Organizações vivem em ondas consecutivas de reestruturação
    (eufemismo para redistribuição e cortes de pessoas e coisas);
  • Governos e prensa que se diz entendida vivem falando de reformas estruturais;
  • Empresas têm políticas de upgrade da sua estrutura (computadores, veículos, equipamentos e até pessoas!).
    Já reparou que raramente se ouve falar em atualização sistemática e programada de processos?;
  • Um dos mais poderosos e conhecidos paradigmas para o desenvolvimento de sistemas de informação atende pelo nome de OO – Orientação a Objetos. Um de seus conceitos básicos prega que métodos (verbos) sejam encapsulados nos objetos²;
  • Muitos sistemas – particularmente pessoas, departamentos e empresas – se autodefinem pelo que possuem e não por suas funções, pelo que de fato realizam.

Um sistema-negócio possui apenas quatro tipos de componentes-recursos:

  • Pessoas: a verdadeira alma do negócio. Aliás, sem um pingo de demagogia, alma, corpo, cérebro, suor, sangue, lágrimas…
  • Recursos Físicos: entra aqui tudo o que é visível mas não é gente. São as instalações, veículos, máquinas, equipamentos etc.
  • Recursos de Informação: toda e qualquer informação gerada e/ou registrada pela organização, seja em que formato for (do papel de pão ao pacotão ERP).
  • Recursos Abstratos: conceitos e ideias que pertencem àquela organização ou ramo de atividades. Uma apólice, por exemplo, é um conceito chave da área de seguros.

Os recursos são distribuídos e estruturados de maneira que permita que o sistema-negócio execute processos e realize sua função. Qual é a base dessa estruturação?

Hierarquias

Parece que é moda detonar hierarquia – a ideia – e sugerir a possibilidade de organizações 100% horizontais. Este tipo de organização nunca existiu e é pouco provável que um dia exista. Quem a propõe, quase sempre com a melhor das intenções, ignora o fato de que desde que o mundo é mundo – desde que um ser vivo se entediou com sua condição unicelular – nos organizamos em hierarquias. Nosso corpo, por exemplo, é um engenhoso conjunto de subsistemas organizados de maneira hierárquica. Células formam o subsistema estômago que por sua vez forma o subsistema aparelho digestivo e assim por diante. Não há nada de errado com a ideia de hierarquias, muito pelo contrário; Guia #10: Hierarquias são imprescindíveis porque i) dão estabilidade ao sistema; ii) garantem resiliência; e iii) reduzem a quantidade de informações que cada componente precisa trabalhar.

Bilhões de anos depois de aquele entediado ser unicelular decidir evoluir, foram inventados clãs, tribos, cidades, nações, exércitos, igrejas e empresas. Todos são exemplos de sistemas socioculturais baseados na ideia da organização hierárquica. Se é da nossa natureza, por que a hierarquia é tão debatida e combatida? Alguns motivos:

  • A primeira mensagem que um organograma passa é a de que pouquíssimos alcançarão o topo.
    Para cada vencedor existirão centenas ou milhares de perdedores.
  • A segunda mensagem diz que os vizinhos no organograma são seus inimigos ou, no mínimo, concorrentes.
    Existem empresas que incentivam explicitamente este entendimento.
  • Da maneira como foi adotado pelas organizações, o modelo hierárquico cria uma divisão bem nítida entre cérebro (aqueles que pensam) e mãos (os que fazem). Parida no início do século passado no advento da administração científica, esta divisão sobrevive até hoje na grande maioria das empresas.
  • Negócios, assim como as universidades, caracterizam-se pelas fronteiras internas rígidas e quase intransponíveis. Áreas de negócios, assim como disciplinas em uma escola, são silos bem fechados. Quando se relacionam, o fazem na marra e com má vontade.
  • Este desenho funcional (sic) – que valoriza especializações – é outro produto da administração científica. Por ter feito (muito) sentido em linhas de montagem, foi replicado automaticamente por toda a organização. Marketing, Produção, Vendas e Contabilidade são exemplos clássicos de fronteiras muito bem definidas (e equivocadamente cimentadas).
  • Não raro este modelo traz de maneira intrínseca a desconfiança e o medo (que são diretamente proporcionais à quantidade de mecanismos para comando e controle). Preguiça, alienação  e  politicagem também se apresentam como efeitos colaterais relativamente comuns.

Se hierarquias são naturais e imprescindíveis, como colocado anteriormente, qual é ou quais são as respostas para seus diversos efeitos negativos?

Anarquias

Se negócios são sistemas complexos – e nesta altura do campeonato eu espero que você já tenha concordado com isso – então outro imenso pecado de seus formuladores e arquitetos foi ignorar uma propriedade fundamental deste tipo de sistema: a auto-organização. Em poucas palavras, auto-organização é a habilidade de criar sua própria estrutura, de aprender e evoluir. Guia #11: A auto-organização é a norma, o comportamento default de um sistema complexo e dinâmico. A revolta daquele ser unicelular, 3.6 bilhões de anos atrás, foi a primeira manifestação desta propriedade (em solo terráqueo, obviamente).

Guia #12: O único requisito para que a auto-organização aconteça é um contexto – uma fronteira que a restrinja e direcione. Vimos na primeira parte desta série que um negócio se autodefine e se posiciona em um contexto, delimitando fronteiras. O que é comumente ignorado é o fato da auto-organização ocorrer também dentro do próprio negócio, diariamente, em cada mínima área ou subsistema. Quanto menos uma empresa regula, através de suas políticas e normas, mais espaço ela abre para a auto-organização. Se não há um código de vestimenta, por exemplo, os colaboradores, na base da tentativa e erro (isso pode ser engraçado), concordarão com um padrão.

Parece que estamos finalmente descobrindo que a melhor maneira de se controlar um sistema complexo é deixando que seus subsistemas sejam responsáveis pela grande maioria das decisões. Porque é natural que seja assim. Pense em seu corpo, por exemplo. Repare como o funcionamento do subsistema coração é autônomo. Ele não depende que o cérebro o comande: bate! acelera! agora para porque eu quero descer!!

No entanto, ainda não são nada desprezíveis as barreiras para adoção desta linha de pensamento. Em um artigo anterior comentei algumas dessas restrições (culturais). Voltarei ao tema na parte 5 desta série. Até lá, insisto, leia Marco Regulatório da Silva.

Novos Modelos de Estrutura

A hierarquia é inevitável. A anarquia³ – produto desejado da auto-organização – é imprescindível. Que tipo de modelo nasce desta combinação? Propostas muito recentes falam sobre hierarquias dinâmicas, organizações fractais e que tais. Qualquer resposta simples ou desenho que se pretenda definitivo devem ser recebidos com desconfiança. Ao pensar negócios como sistemas complexos, devemos nos lembrar de alguns fatos e características. Por exemplo:

  • Sistemas gigantescos (pense naquele pacotão ERP ou em um elefante, tanto faz) são lentos e pouco resilientes.
  • Sistemas que escalam lateralmente (scaling out) são mais ágeis e adaptáveis que aqueles que escalam na vertical (scaling up). Na lata: um grande departamento com 200 colaboradores ou 10 times com 20? Ou 20 times com 10?
  • Hierarquias são necessárias para autorização. Mas a comunicação ocorre nas redes (formais e informais).
  • Quanto maior o número de conexões em um sistema, maior será o número de barreiras e restrições.
    Ops… esta colocação não contradiz o segundo item acima?
  • Por que uma organização acata as leis de mercado em seus relacionamentos externos e aceita conviver com inflexíveis monopólios internos?
  • Faz sentido que um verbo (ex: Vender) seja esquartejado e distribuído entre diversos sujeitos (ex: Vendas, Finanças, Logística…)?

Arquitetos (de verdade) conhecem (e aceitam ou não) o Guia #13: A forma segue a função. Apele para sua memória e tente se lembrar de uma única empresa que atenda este guia. Repare como departamentos de contabilidade, finanças, marketing e afins fazem pouco ou nenhum sentido quando confrontados com a função-missão do sistema-negócio. Não causa espanto o fato de tantas organizações, sejam públicas ou privadas, parecerem tão disfuncionais. O tema é quente (e controverso) e seguirá na próxima parte. Inté!

 

Notas

  1. O Custeio Baseado em Atividades (ABC) existirá, talvez com outro nome, no dia em que uma organização for desenhada e gerenciada a partir de seus processos.
  2. Um padrão arquitetônico relativamente recente propõe a declaração de independência dos verbos, questionando de maneira consistente (aos olhos deste que aqui rabisca) um dos fundamentos da programação orientada a objetos. O padrão é o DCI (Data-Context-Interaction) e seu inventor é Trygve Reenskaug, o cara que nos deu o MVC.
    Este é o melhor livro sobre o tema, caso te interesse.
  3. Anarquia não é (apenas) sinônimo de baderna. O termo também significa “um sistema de governança que evita a coerção, violência, força e autoridade e ainda assim promove uma sociedade produtiva e desejável” (trecho extraído da Wikipedia).
    Entendo que o termo nunca vingará no mundo dos negócios. Mas é aquele que melhor expressa a realização ideal da auto-organização.
  4. Este é o primeiro artigo que escrevo praticamente deitado (sigo em repouso absoluto por causa da coluna). Espero que ele não reflita meu estado físico atual.