Todo negócio pede licença para existir apresentando uma missão – sua Razão Social. É assim que ele diz¹ qual tipo de riqueza pretende gerar e compartilhar com a sociedade que o recebe. A maneira como esse compromisso é realizado delimita o núcleo do negócio (core business). Na terminologia utilizada neste finito dizemos que estão definidos os processos primários – o Sistema Operacional de uma empresa. As questões colocadas no artigo anterior referem-se à maneira como esses processos são pensados e implantados. Parece correto que todos os negócios sejam vistos como cadeias de valor?

A visão da cadeia – uma sequência linear de entradas e saídas, com matéria prima em uma ponta e o produto final na outra – é nossa invenção mais recente. Seu surgimento é consequência da “Revolução Industrial” e devemos creditar seus fundamentos práticos e teóricos aos trabalhos de Taylor e Ford, principalmente.

Se não fossem as cadeias de valor, nunca teríamos conhecido o mercado de massa, os Mad Men e o Big Mac. Goste-se ou não de seus produtos e efeitos colaterais, o fato é que o mundo seria bem diferente caso essa revolução nunca tivesse acontecido. Melhor em muitos pontos, consideravelmente pior em outros tantos.

O problema é que essa visão se tornou onipresente ao ponto de muitos acharem que seria a única forma de criar riqueza. “Estendê-la a serviços, principalmente àqueles intensivos em conhecimento, pode envolver distensões, amputações e entorses tão procustianas (violentas) que acabam confundindo em vez de esclarecer a situação real”, avisou Tom Stewart². Alerta ignorado, como atestam as famigeradas fábricas de software, fábricas de processos (jurídicos), fábricas de projetos e, pasmem, fábricas de escolas. Como nos ensina um dito popular, dê um martelo para uma criança e tudo vira prego.

Os dois metamodelos que são alternativas para as cadeias de valor foram criados muito tempo antes da revolução industrial. São desenhos naturais, quase orgânicos.

Redes de Valor

José planta batatas, João, beterrabas e Joaquim pesca. Os três vão à feira duas vezes por semana e se encontram na barraca do Jorge. Ali vendem seus produtos e compram outros, abastecendo suas despensas. Desempenham os papéis de fornecedores e clientes de Jorge e outros feirantes.

Ao modelo de negócio do Jorge damos o nome Rede de Valor. Bancos, com seus correntistas, investidores e mutuários são um bom caso de uso do mesmo metamodelo. Seguradoras, Correios e sites de leilão ou classificados também. Todos funcionam como hubs, plataformas ou barracas onde diversas pessoas trocam bens e serviços através de um intermediador. A riqueza gerada pelo intermediador é a própria intermediação ou o local onde ela ocorre.

Apesar de muito antigo, é este modelo que define alguns dos mais rentáveis negócios do século 21, como Google e Facebook, por exemplo. Claro, sem falar nos bancos.

Oficinas de Valor

Provavelmente por plantar batatas, José tem sofrido com fortes dores nas costas. Ele procurou uma clínica especializada e passou por vários exames. Cada um deles executado por um especialista. Depois de alguns dias, José foi atendido pelo Dr. Jair, que lhe apresentou o diagnóstico e receitou um tratamento. É bem provável que o Dr. Jair não saiba, mas o seu negócio é um tipo de Oficina de Valor.

É deste metamodelo que derivam escritórios de advocacia, salões de beleza, tendas de cartomantes, empresas de consultoria e também aquelas que desenvolvem software por encomenda, por exemplo.

Se o pulo do gato das cadeias de valor foi a redução radical da variedade das entradas e saídas – “o cliente pode escolher qualquer cor para o carro, desde que ele seja preto”, dizia Ford – nas oficinas temos exatamente o contrário. É impossível antever todas as possibilidades. O trabalho que deve ocorrer entre inputs e outputs, o processamento, requer conhecimento especializado e raciocínio, muito raciocínio. Não é por outro motivo que Dave Gray é tão contundente ao criticar a ênfase atual em processos, scripts e receitinhas de bolo³. Para ele, seriam tentativas de criar sistemas à prova de idiotas. A Oficina de Valor, por definição, não é um lugar confortável para idiotas. A menos que eles sejam clientes.

Negócios Fora da Lei

Não há lei no mundo que proíba um banco de se ver como uma cadeia de valor ou uma produtora de software customizado de se apresentar como fábrica. O problema é que eles subvertem algo que seria natural. É como tentar encaixar um cubo em um espaço redondo. Porque os bancos continuarão sendo barracas na grande feira financeira, ou seja, redes de valor participando de uma rede maior. Assim como desenvolvedoras de software personalizado, mesmo aprendendo muito sobre reuso, seguirão sua sina de oficina.

Mas há uma grande Lei que, se não proíbe, gera inúmeros problemas para negócios que se apresentam em um modelito artificial, particularmente na forma de cadeia de valor. É a Lei de Ashby: “só a variedade absorve variedade”. Em tempos de Copa do Mundo, que tal apelar ao craque Garrincha para uma breve explicação?

O técnico Feola passou toda a preleção explicando e rabiscando no quadro negro o ‘processo’ que o time deveria utilizar naquela fria tarde contra a temível seleção soviética. Nilton conteria suas subidas ao ataque. Vavá deveria prender a bola, aguardando o avanço do trio da meia cancha. Garrincha só entraria na diagonal quando Zagalo não fechasse pelo meio. Quando todos davam o assunto por encerrado, Mané perguntou: “Seu Feola, tá legal, mas o senhor já combinou tudo isso aí com os russos?

E sua empresa, já combinou com os clientes quais carros pretos eles podem pedir?

Notas

  1. Eu sei, já escrevi isso antes. Não custa repetir: a Razão Social, se utilizada de forma correta, explica a Missão de uma empresa.
  2. A Riqueza do Conhecimento, p. 113~116. Campus, 2002.
  3. A Empresa Conectada, p. 90. O’Reilly/Novatec, 2013.
  4. Fountain of Wealth – Suntec City, Singapore foi surrupiada de William Cho no Flickr.