Esta é a primeira das três partes da palestra que apresentei no último sábado, “O Futuro não é mais como era Antigamente“. Publicarei todas aqui, antes que voltem para o segundo plano de minha gaveta. Hoje escrevo sobre pessoas e equipes. O artigo foi bem contaminado por um tema que ganha espaço até em agenda de candidato, o “apagão” de mão de obra qualificada.

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Nossa história se inicia com um grande apagão. Lá nos idos de 1950 e início da década de 1960, quando agências do governo dos EUA e algumas pouquíssimas empresas começaram a apostar no potencial do “cérebro eletrônico”, aconteceu a Crise do Software 1.0: milhões foram gastos naquelas engenhocas mastodônticas antes que sentissem falta de um componente essencial: gente. Particularmente daquele tipo que depois receberia a genérica alcunha “programador¹”. Qualquer projetinho de meia tigela demandava dezenas e até centenas de profissionais. Acontece que poucos projetos daquela época eram pouco ambiciosos. Só o SAGE (Semi Automatic Ground Environment), da Força Aérea, contou com 700 programadores e 1400 profissionais de suporte. Época legal, em que cada linha de código chegava a custar assombrosos US$ 50.

A grana, melhor dizendo, o potencial de faturamento chamou a atenção de muita gente. Começaram a brotar as “software houses” independentes. O desenvolvimento de sistemas deixava de ser uma exclusividade dos produtores de ferro (IBM, Burroughs, RCA etc). Mas como faltava gente. Os dois anúncios que você vê ao lado se preocupavam só com isso: atrair talentos. O simpático Dr. Bauer, da Informatics Inc., cravou a sua “segunda lei” no clássico reclame²: “o talento vai para onde está a ação“.

Mas os anúncios não eram suficientes. E as empresas lançaram mão das estratégias mais agressivas para encontrar “talentos”. Montavam escritórios e quiosques em grandes cidades só para achar pessoas que poderiam ser “convertidas” em programadores. Os recrutadores eram orientados a dedicar especial atenção para: professores de matemática e, olha que jóia, professores de música!

A estratégia funcionou. Em paralelo, universidades e escolas nasceram ou criaram cursos para formar gente que deveria atender toda aquela demanda pós-moderna.

Até que, num belo dia, o mundo ficou chato (no sentido de ter uma superfície plana). E dos lugares mais improváveis surgiam programadores que prometiam executar o mesmo trampo de seus similares ocidentais por 1/10 do preço ou menos. Quem já teve o prazer de ler “O Mundo é Plano“, de Thomas L. Friedman (Objetiva, 2005), aprendeu que a Globalização 3.0 não afetou apenas os desenvolvedores de sistemas. Ninguém está isento do achatamento do mundo. E todo mundo pode aproveitá-lo. Acontece que a pancada no mercado do software, além de ter sido a primeira, foi também a mais sentida. “The New Face of the Silicon Age”, artigo publicado na Wired em fevereiro de 2004, mostra bem o tamanho do estrago.

Os Pecados do Lado de Baixo do Equador

O alegre povo de Pindorama, com um certo atraso, sacou: “tem bagulho bom aí!” (e João de Santo Cristo ficou rico a acabou com todos desenvolvedores da Índia). Bem, não foi bem assim. Poderia ter sido, não fôssemos tão viciados no auto-engano. A edição da EXAME aí ao lado, de 25/jun/2003, cravava na capa: “Descobrimos um segredo: o Brasil produz tanto software quanto a Índia.” Pouco tempo depois, em 17/mar/2004, a mesma revista jogou uma ducha d’água fria: “A Índia dá aula ao Brasil” (negrito e vermelho da versão original). Segredinho sem vergonha esse, hem?

Jogamos tantas fichas em apostas bobinhas (CMMI, MPS.br e cartórios afin$) que agora assistimos bondes a nos ultrapassar. EXAME, em 30/jun/2010: “Rivais Além do Futebol – No setor de tecnologia, os empreendedores da Argentina estão melhor que os brasileiros na corrida da globalização.

Vou poupá-los do chororô sobre uma estratégia para o software tupiniquim. Quem se interessar pelos meus R$ 0,02 sobre o tema pode ler uma pequena série que publiquei em dezembro de 2007 no abandonado Graffiti. O ponto aqui é outro.

É a Educação, Estúpido!

O que Índia, China, Coréia do Sul e outros emergentes da indústria digital têm em comum é a preocupação com educação. O tema sempre aparece na pauta de nossos políticos. Mas aparece assim, como um tópico em um slide que apresenta suas “prioridades”. Até hoje não vi ninguém ir além do óbvio (mais escolas, professores melhor preparados e mais bem pagos etc etc). Como sou um dos menos indicados a tratar o tema com a profundidade e seriedade que ele merece, me limitarei a propor dois ou três novos “slides”, com questões mais específicas:

  • No último dia 12/ago a FGV assustou um tanto de gente com um número: “Até 2014, haverá um déficit de 800 mil vagas no setor“. Como não tem muito tempo que esse número era 200 mil, minha desconfiança é alta. Tanto que na palestra perguntei: “Será que estão confundindo a gente com atendentes de telemarketing de novo?” Não importa (muito). O fato é que há sim um “apagão”. E como suprir tamanha demanda de forma rápida? Com cursos técnicos! Em 2 anos é possível formar um batalhão de bons desenvolvedores. Repito o que disse o mineiro Adail Retamal em um seminário há 3 anos: “Programação se aprende em curso técnico, não na faculdade“.
  • Não tenho números oficiais, mas há tempos sabemos que cerca de metade da patota que inicia um curso (técnico ou superior) não o conclui. Alguém já se ocupou em descobrir as razões de tanta desilusão? Será que a distância entre nosso instigante cotidiano digital e os ângulos retos e empoeirados de nossas escolas não é uma boa explicação?
  • Se eu tivesse grana montaria uma escola com uma grade antenada. Uma base comum, formada por mínimas certezas e teorias fortes, seria obrigatória para todos. Depois, um cardápio multidisciplinar estaria à disposição de designers, engenheiros, líderes, analistas etc. Não me preocuparia em ter o crivo do MEC, PMI, IIBA nem nada do tipo. Uma escola de pensamento independente. Acho que seria uma revolução.
  • A formação de mão de obra qualificada é responsabilidade exclusiva de governos? É estranho o pensamento de alguns de nossos capitalistas de TI. Aqueles que têm real consciência da criticidade das pessoas para seu negócio devem se mexer. Quem quer talento hoje deve se preocupar em formá-lo. Duas dicas: i) Faça com que 4 ou 8 horas da jornada semanal seja utilizada exclusivamente em atividades de aprendizado; ii) Incorpore a segunda lei do Dr. Bauer: “O talento vai para onde a ação está“. Ação, pra quem não entendeu, é projeto que dá tesão.

Observações:

  1. É preciso dizer que naquela época a tarefa de programação era dividida entre diversas funções, do pensador de algoritmos ao perfurador de cartões.
  2. Sorte nossa que o anúncio, lá no rodapé (p.s.), mata a curiosidade. A “primeira lei” do Dr. Bauer é a seguinte: “se o programa tem um bug, o computador o encontrará”. Grande Dr. Bauer. Mal sabia que sua primeira lei viraria mantra-desculpa de tester preguiçoso…
  3. A parte pré-histórica aqui narrada foi surrupiada do grande livro “From Airline Reservations to Sonic the Hedgehog – A History of the Software Industry”, de Martin Campbell-Kelly (The MIT Press, 2003).
  4. O cartoon, Fitting into the system, foi surrupiado de HikingArtist.com. Os dois anúncios que ilustram este artigo foram publicados no livro citado acima. E as capas da EXAME e da Wired são propriedade de suas editoras.
  5. O “Clube da Esquina” é do Milton e de todos os Mineiros; “O Pecado ao Sul do Equador” é do Chico; e o “Bom Bagulho”, do Renato Russo.