A parte IV encerrou a apresentação da face dura da arquitetura de negócios. Este capítulo trata da parte soft – é sobre cultura corporativa e as cinco dimensões que lhe dão forma.

Antes de começar, preciso fazer um mea culpa. Meus artigos e trabalhos anteriores sobre o tema nunca deram a devida atenção aos aspectos culturais da arquitetura corporativa. Dada sua subjetividade, nunca vislumbrei a possibilidade de modelá-los e considerá-los como parte indissociável da arquitetura do negócio. Talvez amenize a minha pena o fato de pouquíssimos autores o terem feito. Ao enxergar negócios como sistemas socioculturais complexos e adaptáveis, se torna impossível não contemplar seu lado soft, invisível e, por que não dizer, humano.

Há uma boa analogia para a ilustração desses dois lados da arquitetura de negócios. Estrutura e processos são o hardware – a parte dura e visível¹. Função e cultura são o software, o sistema operacional de uma empresa.
É sobre ele a conversa de hoje.

Cultura

Segundo o Houaiss, cultura significa, entre outras coisas, um “conjunto de padrões de comportamento, crenças, costumes, atividades etc. de um grupo social”. Todo e qualquer negócio tem a sua cultura – uma imagem compartilhada por todos os seus membros. Essa imagem tem um lado cognitivo – aprendido na convivência e através de exemplos – e um lado normativo – declarado explicitamente através de valores, crenças e contratos sociais. São lados de uma mesma moeda e o tempo (ou a hipocrisia) trata de filtrar eventuais discrepâncias entre o que é dito e aquilo que é feito.

Uma cultura se consolida com o tempo. O que não significa que a resistência à mudanças é produto dessa consolidação. Uma empresa pode ter uma cultura dinâmica (adaptável às realidades emergentes) devidamente consolidada. Mas é correto entender que a cultura pode ser e é, na grande maioria das empresas, um dos maiores entraves aos processos de mudanças. No entanto, ao contrário do que muitos acreditam, é possível mudar uma cultura. É difícil, muito difícil, mas é possível.

Para tanto, antes de mais nada, é preciso entender o que é cultura e como ela é formada no contexto de um negócio. O primeiro capítulo adiantou que negócios, como sistemas socioculturais, possuem cinco dimensões: Riqueza, Conhecimento, Valores, Poder e Beleza. É este conjunto de dimensões interdependentes que forma o que chamamos de cultura corporativa.

Riqueza

Vimos na parte anterior que são chamados de processos primários todos aqueles que cuidam da geração e disseminação de riqueza. Ou seja, esta dimensão está diretamente relacionada com os processos e, consequentemente, com o comportamento do sistema-negócio. Onde está a cultura aqui? Na interpretação dada por uma organização aos verbos gerar e disseminar.

Nos habituamos a interpretar esses verbos como se fossem mutuamente exclusivos. Quem é de direita enxergaria apenas a geração de riqueza como propósito fundamental de uma entidade com fins lucrativos. Já os de esquerda enfatizariam a disseminação, a distribuição de riqueza. Nos anos 1970, um ministro da economia tupiniquim teria dito que era preciso “aumentar o bolo antes de distribui-lo”. Postergação que parece vigorar até hoje. A dicotomia – gerar X disseminar – é falsa. Sem a geração não há o que distribuir. E a não disseminação esgotará a população com capacidade de consumir o que é gerado.

Henry Ford, lá nos primórdios do capitalismo, sabia da necessidade de balanceamento entre geração e disseminação. E fez com que seus colaborares – então os mais bem remunerados na indústria automobilística – consumissem parcela considerável de sua própria produção. Mas a questão vai muito além dos bons salários ou da distribuição de lucros.

Porque a riqueza gerada não precisa ser contabilizada apenas em termos financeiros. Você percebe valor quando utiliza os serviços da Google, por exemplo. E este valor não é monetário. Você valoriza aquela empresa que o atende bem. Você tende a atribuir maior valor para organizações éticas e socialmente responsáveis. Enfim, nem toda riqueza é quantificável. Mas toda riqueza é percebida. Quando a sociedade é favorecida, mesmo que indiretamente, riqueza foi disseminada². E só se dissemina aquilo que é gerado.

Conhecimento

Conhecimento sempre foi um tipo de riqueza. Um tipo muito especial, diferente daquela baseada em recursos finitos (grana e outros ativos físicos). Porque o conhecimento tem seu valor aumentado na medida em que é distribuído. Enquanto dimensão de um sistema sociocultural, conhecimento refere-se a forma como uma empresa aprende. Uma organização verdadeiramente preocupada com a geração e disseminação de conhecimento é, dentre várias outras coisas, mais resiliente. Ela sofre menos em tempos de instabilidade caduca e hipercompetitividade. Porque aprende mais, melhor e de maneira mais rápida. Aprende o quê?

  • Aprende a Aprender: desenvolve habilidades para aprender, desaprender e reaprender. Enriquece seus processos com feedback loops que visam à melhoria contínua, ou seja, ao constante aprendizado.
  • Aprende a Ser: desenvolvimento contínuo da identidade da organização (visão, valores) e de todos os indivíduos que a compõem.
  • Aprende a Fazer: ou seja, desenvolve competência – que é produto de duas variáveis: disciplina e habilidade.

Ainda há quem acredite que todo conhecimento desenvolvido por uma organização é passível de explicitação (ser registrado em algum lugar). Oitenta porcento do conhecimento desenvolvido nas três dimensões acima é tácito – residirá só nas cabeças das pessoas. O que torna o conhecimento um ativo não apenas intangível, mas também volátil e instável, que tem dor de barriga e ressaca de vez em quando e que vai embora todo dia lá pelas cinco ou seis da tarde.

Valores

Dimensão-terreno fértil para uma plantação de abobrinhas. Se uma empresa lista, entre seus valores, a honestidade e o respeito ao próximo, alguém vai discordar? Claro que não. Mas uma organização é ingênua quando apresenta uma lista com meia dúzia de valores e acredita que ela, por si só, gerará unidade e senso de direção. Cada pessoa desenvolve durante a vida a sua própria lista de valores. A empresa tentará desenvolver um denominador comum, mas nunca conseguirá abranger todas as aspirações e guias de seus colaboradores. Por isso ela estará continuamente envolvida com a resolução de conflitos. Conflitos entre áreas ou indivíduos.

Um conflito indica a não concordância tanto em relação aos meios quanto aos fins. Sua resolução plena, cujos diversos caminhos estão além do escopo desta série, leva os envolvidos para um trabalho cooperativo (acordo total sobre meios e fins). Mas existem situações – como a busca por criatividade e inovação, por exemplo – em que a não concordância em relação aos meios ou aos fins é desejada. Quando há compatibilidade em relação aos meios temos uma coalização. E uma concordância quanto aos fins gera uma competição. A organização gerencia e direciona essas resoluções.

Em tempos em que se fala tanto sobre ética, dada sua aparente escassez, esta dimensão ganha relevância que vai além, muito além daqueles belos posteres com uma listinha de valores. Deveria ser tópico obrigatório, por exemplo, em qualquer processo de seleção ou de contratação de terceiros. A Apple que o diga.

Poder

Centralizar ou descentralizar? A auto-organização, característica indissociável dos sistemas complexos, significa perda de poder? O empoderamento (empowerment) significa transferência de poder?

É curioso como a dimensão poder ainda é comumente percebida como um jogo de soma zero – eu ganho, você perde. O poder, assim como o conhecimento, aumenta quando é disseminado. Quando um gerente dá autonomia para determinado grupo tomar decisões, ele não perde nem autoridade, nem força e nem conhecimento para influenciar ou tomar aquelas decisões. Se abriu caminho para que outros o façam, é porque confia no próprio taco (selecionou, ensinou e orientou bem). O que se ensina (neste ponto específico) e serve como orientação são os critérios de decisão. É isto que se compartilha, não o poder. O poder é simplesmente disseminado.

Beleza

A tríade vitruviana que inspirou os primeiros desenvolvimentos da disciplina que conhecemos como arquitetura era: firmitas (robustez, estabilidade), utilitas (utilidade, funcionalidade) e venustas (beleza). Toda arquitetura, seja de uma casa, de um software ou de um negócio, deveria ser testada contra esta simples porém exigente lista. Mas o que significa beleza no contexto dos negócios? Como uma empresa pode gerar e disseminar beleza?

O grande Lenine cantou que “o que é bonito | é o que persegue o infinito”. E nessa toada a gente invade o transcendental, passando dos limites das coisas físicas, dos recursos, processos, regras, funções… É impossível falar sobre cultura – mesmo que seja uma tal cultura corporativa – e não falar de emoções. Beleza, neste sentido, é a emoção e o orgulho de fazer parte de um grande time em uma grande empresa. Grande, insisto, não em termos físicos. Mas em suas aspirações e realizações. Quero crer que todo mundo um dia já sentiu muito orgulho de vestir uma camisa; de falar com a boca cheia e os olhos brilhando: “eu trabalho na <xpto>!”

Se é difícil tratar de tema tão subjetivo ao falar sobre arquitetura de negócios, por outro lado é impossível não considerar a relevância desta dimensão na formação da cultura de uma organização. A beleza é simplesmente a variável mais importante na integração social.

Dimensões Interdependentes

Todas as cinco dimensões apresentadas acima são interdependentes e fortemente acopladas. É difícil, por exemplo, achar beleza em uma organização mesquinha (na disseminação de riqueza) é excessivamente centralizadora (na distribuição de poder).

E a relação entre este grande sistema operacional e o hardware (a estrutura e os processos) também é íntima e forte. O desenho da estrutura, por exemplo, é consequência da forma como a empresa pensa a geração e disseminação de poder.

Portanto, quando queremos entender ou mesmo conceber um negócio, é de suma importância que o todo seja visto e apreciado. Nesta série vimos que o todo é formado por: Contexto (ambiente transacional), Função (missão), Estrutura (distribuição de recursos), Processos e Cultura. O próximo capítulo, o último, tentará sintetizar tudo o que vimos até aqui. Tentará! Até lá!

 

Notas

  1. Para evitar qualquer confusão: um processo não é visível, mas o resultado de sua execução sim. Também podemos ver componentes da estrutura trabalhando, sendo alterados, consumidos ou criados durante a execução de um processo. Por isso ele é citado, na analogia, como parte do hardware de um negócio.
  2. Alguns autores, como Kaplan e Norton por exemplo, classificam processos regulatórios e sociais como processos primários. A coleta seletiva de lixo, por exemplo, seria um processo primário. Porque a sociedade se beneficia dela.